Processual > O Meu Recurso para o Tribunal da Relação 1

O Dr. Ricardo Sá Fernandes vai publicar, com a máxima brevidade possível, em livro, o Recurso que, para minha defesa,enviou para o Tribunal da Relação de Lisboa. Esse livro incluirá ainda a resposta ao Recurso que o Ministério Público apresentou.

Todavia, o Dr. Ricardo Sá Fernandes autorizou-me a publicar aqui no site os dois primeiros capítulos. São documentos extensos mas cuja leitura é bem esclarecedora para quem se interessa pela verdade.

Assim, hoje apresento aqui o  1º Capítulo. O 2º será publicado dentro de poucos dias de forma a dar tempo aos leitores para lerem calmamente este primeiro documento.

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I

  O PROCESSO

  

A acusação

  

            Carlos Cruz foi detido na noite de 31 de Janeiro de 2003, quando, com a mulher e a filha mais nova, acabara de chegar à porta de casa dos seus sogros, em Quarteira, no Algarve.

Transportado pela Polícia Judiciária para o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, foi aí ouvido pelo juiz Rui Teixeira, que, na madrugada do dia 1 de Fevereiro, decretou a sua prisão preventiva, por ter entendido que estaria indiciada a prática de crime de abuso sexual de crianças e haveria risco de continuação da actividade criminosa e perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Essa situação de prisão preventiva só cessou a 4 de Maio de 2004, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de que foi relator o juiz desembargador Manuel Amaral, que deu provimento ao recurso interposto do despacho do juiz Rui Teixeira, de 6 de Fevereiro de 2004, que mantivera Carlos Cruz sujeito a esse regime.

Entretanto, a 29 de Dezembro de 2003, fora formulada a acusação do Ministério Público no chamado processo Casa Pia, a qual foi subscrita pelo procurador da República João Guerra - a quem cabia a direcção e responsabilidade da investigação - e pelas procuradoras adjuntas Paula Soares e Cristina Faleiro.

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            Foram acusados da prática de crimes de natureza sexual - ou de abuso sexual de crianças, ou de abuso sexual de pessoa internada, ou de actos homossexuais com adolescentes - as seguintes pessoas: Carlos Silvino, Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Carlos Cruz, João Ferreira Dinis, Paulo Pedroso, Hugo Marçal e Herman José Krippahl. Além disso, Carlos Silvino foi também acusado de crimes de violação.

            Por outro lado, foram incriminados pela prática de crimes de lenocínio os seguintes arguidos: Carlos Silvino, Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Hugo Marçal, Francisco Alves e Gertrudes Nunes. Acresce que Carlos Silvino e Manuel Abrantes eram ainda indiciados por crimes de peculato de uso e Francisco Alves por crime de detenção ilegal de arma.

            Mais tarde, a 3 de Setembro de 2004, foi apensado a este processo um outro, que tinha acusação pendente desde 4 de Abril de 2003, movido apenas contra Carlos Silvino, igualmente pela prática de crimes de natureza sexual (mas, neste caso, incluindo crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência), instaurado antes da deflagração pública do chamado escândalo da Casa Pia - ocorrida no final de Novembro de 2002 -, pelo qual Carlos Silvino foi preso preventivamente, a 25 de Novembro de 2002,           No conjunto dos dois processos, havia 32 jovens ofendidos, alegadamente vítimas de crimes sexuais, que, na sua maioria, se constituíram assistentes no processo. Entre todos, havia em comum o facto de incriminarem sempre Carlos Silvino, com excepção de um único caso, em que um jovem apenas acusava Jorge Ritto.

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A acusação atribuía a Carlos Cruz a prática de cinco crimes de abuso sexual de crianças e um crime de actos homossexuais com adolescentes, cometidos, em 1999 e 2000, na pessoa de três jovens, em dois locais: num prédio da Avenida das Forças Armadas, em Lisboa, e numa moradia, em Elvas.

Concretizando cada um deles e seguindo a acusação, temos o seguinte quadro:

  • Um crime de abuso sexual de crianças, cometido em Dezembro de 1999 ou Janeiro de 2000, em dia não determinado, à noite, na residência de um prédio situado na Av. das Forças Armadas, na pessoa do menor LM, de 13 anos de idade, para onde o arguido Carlos Silvino, a pedido de Carlos Cruz, teria transportado os menores LM e JPL a fim de os sujeitar à prática de actos sexuais; acompanharia o grupo o menor Francisco Guerra.
  • Um crime de abuso sexual de crianças, cometido cerca de um ou dois meses depois do anterior, em dia e hora indeterminados, na mesma morada e na pessoa do mesmo menor, LM, após pedido formulado ao arguido Carlos Silvino, que aí o terá levado para o mesmo efeito.
  • Dois crimes de abuso sexual de crianças, cometidos num sábado indeterminado dos meses de Março e Abril de 2000, numa moradia situada em Elvas, nas pessoas dos menores LM e IM, de 13 anos de idade, que, para esse efeito, teriam sido conduzidos pelo arguido Carlos Silvino, na companhia dos menores Francisco Guerra e JPL no local, encontrar-se-iam os arguidos Hugo Marçal, João Ferreira Dinis, Jorge Ritto, Manuel Abrantes e Paulo Pedroso.
  • Um crime de acto homossexual com adolescentes, cometido em dia indeterminado do último trimestre do ano de 2000, na pessoa do menor LM, já com 14 anos, que, para o mesmo efeito, havia sido transportado pelo arguido Carlos Silvino; no local, estaria o arguido Hugo Marçal.
  • Um crime de abuso sexual de crianças, cometido num sábado indeterminado do último trimestre do ano de 1999, antes do Natal, na pessoa do menor LD, de 13 anos de idade, que, para o mesmo efeito, na companhia de quatro outros menores não identificados, alunos da Casa Pia, havia sido levado pelo arguido Carlos Silvino; no local, encontrar-se-iam os arguidos Hugo Marçal e Paulo Pedroso.

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Para além dos crimes pelos quais Carlos Cruz respondia, a acusação descrevia ainda outras situações que levavam à incriminação do arguido Carlos Silvino pelo crime de lenocínio, por ter transportado JPL a locais onde se encontraria Carlos Cruz, a fim de propiciar a este a prática de actos sexuais com esse menor.

Nesses casos, Carlos Cruz não é acusado de qualquer crime. Todavia, isso não se deveria ao facto de não ter praticado os actos de abuso, mas porque, relativamente a ele, uma hipotética acusação não seria viável por caducidade do direito de queixa de JPL. Porém, porque o crime de lenocínio praticado pelo arguido Carlos Silvino tinha a natureza de crime público, já tal questão da caducidade não se colocava e era possível prosseguir contra este a acção penal.

É assim que a acusação refere os seguintes factos:

  • Em datas não apuradas, entre finais do ano de 1997 e Setembro de 1999, o arguido Carlos Silvino teria levado o menor JPL, pelo menos duas vezes, à residência da Av. das Forças Armadas já referida, supostamente a pedido de Carlos Cruz, a fim de este o sujeitar à prática de actos sexuais;
  • Em igual período temporal e para o mesmo efeito, o arguido Carlos Silvino teria conduzido o menor JPL ao teatro Vasco Santana, na Feira Popular de Lisboa;
  • Em data não determinada, entre Outubro de 1996 e Outubro de 1997, e para o mesmo efeito, o arguido Carlos Silvino teria levado o menor JPL, ao Campo Pequeno, em Lisboa, onde o aguardaria Carlos Cruz, que, depois, seguiria até Cascais, para uma casa de que o arguido Jorge Ritto teria disponibilidade.

Por outro lado, a acusação também menciona, quando atribui a Carlos Cruz a primeira situação de abuso cometida sobre o menor LM, na Av. das Forças Armadas, que, nessa ocasião, o menor JPL teria igualmente sido abusado por Carlos Cruz. Nesse ponto da acusação, é ainda referido que o menor Francisco Guerra, que nesse dia acompanhava o arguido Carlos Silvino e os menores LM e JPL, já teria sido alvo de actos sexuais perpetrados por Carlos Cruz, em datas, locais e circunstâncias indeterminados.

Relativamente a estas situações - que envolveriam os menores JPL e Francisco Guerra -, a acção da justiça não se exercia quanto a Carlos Cruz por causa da caducidade do direito de queixa.

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            Em termos gerais, a acusação sustentava que Carlos Cruz e os arguidos Hugo Marçal, João Ferreira Dinis, Jorge Ritto, Manuel Abrantes e Paulo Pedroso se tinham organizado "numa estrutura informal que lhes permitiria obter, sempre que quisessem, mas com toda a segurança, crianças e jovens menores de 16 anos para as suas práticas sexuais".

Dizia ainda a acusação o seguinte: "Todos estes indivíduos tinham histórias pessoais de práticas sexuais com crianças e jovens menores de 16 anos. Cientes de que estes comportamentos - para além de constituírem crimes - eram alvo de fortíssima reprovação social, e de que a descoberta de tais práticas arruinaria as respectivas carreiras profissionais e poria fim à credibilidade social de que gozavam, decidiram unir esforços para poderem, em total reserva, continuar a sujeitar menores de 16 anos a actos sexuais."

O arguido Carlos Silvino funcionaria como o angariador dos menores de que a rede assim constituída precisava, tendo o arguido especial cuidado na escolha dos menores, atenta a notoriedade dos alguns dos abusadores.

Por outro lado, o alto cargo desempenhado na Casa Pia de Lisboa pelo arguido Manuel Abrantes, era para os arguidos Carlos Cruz, Hugo Marçal, João Ferreira Dinis, Jorge Ritto e Paulo Pedroso, "uma garantia de que a prática de actos sexuais a que sujeitavam alunos da CPL, muito dificilmente seria descoberta".

O arguido Manuel Abrantes, revestido das funções que desempenhou na Casa Pia de Lisboa e pelas prerrogativas de poder que delas resultavam, designadamente a partir do momento em que foi nomeado provedor-adjunto, "dava a necessária cobertura ao arguido Carlos Silvino, quer em relação aos actos sexuais a que este submetia os alunos da CPL, quer em relação às actividades lucrativas, por este desenvolvidas, de condução de alunos daquela instituição à presença de adultos que os submeteriam a actos de natureza sexual, designadamente de masturbação, de coito oral e de coito anal."

Ainda segundo a acusação, o arguido Carlos Silvino conhecia os arguidos Jorge Ritto e Carlos Cruz desde os anos 80, a quem, desde essa época, alegadamente, levaria menores da Casa Pia de Lisboa para a prática de actos sexuais. Era habitual, desde os anos 80, que Jorge Ritto emprestasse as suas casas a outros indivíduos, entre os quais Carlos Cruz, para que nelas praticassem actos sexuais com os menores alunos da Casa Pia.

Sempre segundo a acusação, os arguidos Ferreira Dinis e Carlos Silvino relacionavam-se há vários anos, sendo o arguido Ferreira Dinis, um dos adultos a quem o arguido Carlos Silvino, a troco de dinheiro, levava menores, alunos da Casa Pia de Lisboa, a fim de os levar à prática de actos sexuais. Também o arguido Hugo Marçal conheceria o arguido Carlos Silvino desde 1996, bem como o arguido Manuel Abrantes desde 1998, conhecimentos esses que seriam utilizados para o mesmo fim de propiciar actos sexuais com crianças e adolescentes.

Por outro lado, o arguido Paulo Pedroso dar-se-ia com os arguidos Carlos Silvino, Carlos Cruz e Jorge Ritto, pelo menos desde meados dos anos 90, reunindo-se tais arguidos com frequência numa casa denominada "casa dos R's", situada nas imediações da Casa Pia de Lisboa, na Rua Rodrigo Rebelo nº 4, no Restelo, em Lisboa, onde, nessa década, decorreriam encontros de indivíduos adultos do sexo masculino, "com a única finalidade de sujeitarem crianças, alunos da CPL, à prática de actos sexuais, que ali eram levados, a troco de dinheiro, pelo arguido Carlos Silvino". A casa tinha aquela designação por se situar no Restelo e numa rua com nomes começados pela letra "R", o que, tendo em vista dificultar o reconhecimento dos menores entre si, teria levado a que estes fossem obrigados a escolher um nome de código também começado por essa letra.

De resto, apesar dos importantes cargos públicos desempenhados a partir de 1997, o arguido Paulo Pedroso teria continuado a ser "um dos adultos a quem o arguido Carlos Silvino, a troco de dinheiro, levava menores a fim de os sujeitar à prática de actos sexuais."

Este era o ambiente geral da rede pedófila que a acusação pública quis levar a julgamento, à qual se associou a Casa Pia de Lisboa e os menores abusados, entretanto, constituídos assistentes.

            Esperar-se-ia que um quadro tão impressivo fosse sustentado em indícios abundantes e sólidos: i) testemunhas de relacionamentos (entre arguidos, entre arguidos e vítimas, entre arguidos, vítimas e outros intervenientes); ii) registos de tráfico telefónico ou de outro tipo de prova material acerca da ligação entre essas mesmas pessoas; iii) inspecções aos locais dos abusos, seguida da comprovação do envolvimento dos donos ou utentes desses locais na sua facilitação para a prática desses actos; iv) e tudo o mais que consubstanciasse esse funcionamento em rede informal.

            Porém, a prova recolhida assentava basicamente nas declarações das alegadas vítimas. Pessoas que, na sua generalidade, tinham sido efectivamente vítimas de abusos sexuais - coisa de que a defesa de Carlos Cruz nunca duvidou -, mas que os arguidos - à excepção de Carlos Silvino - negam que tenham sido abusadas por eles. 

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            Relativamente às várias casas onde teriam sido cometidos os abusos praticados pelos membros da referida rede informal, a acusação, no geral, não se preocupou sequer em traçar o modus faciendi, ficando-se no desconhecimento de como é que a acusação supunha que seria o concreto circunstancialismo em que ocorreria o acesso aos locais de abuso.

            Porém, no que diz respeito à vivenda de Elvas, situada na Rua Domingos Lavadinho nº 24, a acusação era muito detalhada. Foi isso, de resto, que levou a que a proprietária da moradia, Gertrudes Nunes, tivesse igualmente sido acusada da prática de crimes de lenocínio. Gertrudes Nunes teria sido contactada para o efeito pelo arguido Hugo Marçal.

            A vivenda de Elvas foi a jóia da coroa da acusação. Foi logo baptizada mediaticamente como "a casa das orgias", onde pessoas ricas e influentes se dedicariam a práticas libidinosas com crianças.

            Foi assim que a acusação descreveu o cenário: "Pelo menos a partir do ano de 1998, os arguidos Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Carlos Cruz, Ferreira Dinis, Paulo Pedroso e Hugo Marçal, bem como outros adultos do sexo masculino, passaram a reunir-se com frequência, aos fins de semana, numa vivenda em Elvas, sita na Rua Domingos Lavadinho, nº 24, propriedade da arguida Gertrudes Nunes."

            Seria o arguido Carlos Silvino quem, a troco de dinheiro, passou a levar os menores, alunos da Casa Pia, àquela vivenda, "a fim de os mesmos serem aí sujeitos à prática de actos sexuais." Explicava-se a escolha do local porque "os arguidos Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Carlos Cruz, Ferreira Dinis, Paulo Pedroso e Hugo Marçal necessitavam de uma casa em local recatado, onde pudessem perpetrar actos sexuais sobre menores sem levantar a mínima suspeita." E esclarecia-se que "o arguido Hugo Marçal residia na cidade de Elvas onde exercia a sua actividade profissional como advogado e professor do ensino básico", o qual "primava pela discrição e tinha uma vida familiar aparentemente estável." Acrescentava-se ainda que "o arguido Carlos Silvino tinha amigos residentes na zona de Elvas, Vila Viçosa e na aldeia de S. Romão, onde se deslocava com alguma frequência."

            Teria sido neste contexto que "em data e circunstâncias em concreto não apuradas, a arguida Maria Gertrudes Pragana Nunes foi contactada pelo arguido Hugo Marçal no sentido de lhe conceder a troco de dinheiro, a utilização da sua residência sita na Rua Domingos Lavadinho nº 24, em Elvas, a fim de aí poderem ter lugar, aos fins-de-semana, com regularidade, encontros para práticas sexuais entre homens adultos e menores." Aliás, "a arguida Gertrudes conhecia também o arguido Carlos Silvino, sabendo, inclusivamente, que o mesmo se deslocava com frequência à aldeia de S. Romão, de onde era natural uma das suas vizinhas."

            Quanto à combinação entre Hugo Marçal e Gertrudes Nunes, a acusação adiantava o seguinte: "Quando o arguido Hugo Marçal contactou a arguida Gertrudes para que lhe disponibilizasse, aos fins-de-semana, a utilização da referida vivenda, relatou-lhe o fim a que tal utilização se destinava, pedindo-lhe que a própria e os seus familiares saíssem da mesma quando chegassem os adultos e os menores levados pelo arguido Carlos Silvino, recomendando-lhe que não falasse daqueles encontros a ninguém. Não obstante, a arguida Gertrudes Nunes chegou, por vezes, a cruzar-se com os menores quando estes ali eram conduzidos pelo arguido Carlos Silvino, aos quais cumprimentava com beijinhos."

            Mais se dizia o seguinte: "Quando se reuniam na residência da arguida Gertrudes Nunes, os arguidos Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Carlos Cruz, Ferreira Dinis e Paulo Pedroso deixavam os veículos automóveis em que se faziam transportar estacionados em locais um pouco distantes da referida vivenda, de forma a evitar que se levantassem quaisquer suspeitas. Estes arguidos eram recebidos pelo arguido Hugo Marçal, o mesmo acontecendo relativamente aos menores que ali eram levados pelo arguido Carlos Silvino." Por outro lado, quanto à forma de recrutamento, a acusação expunha o seguinte: "O arguido Carlos Silvino combinava com os menores encontrarem-se à porta dos Colégios respectivos, a horas determinadas e geralmente aos fins-de-semana, e uma vez reunidos todos os menores, dirigiam-se à cidade de Elvas, utilizando a auto-estrada ou estradas secundárias, mas sempre com o cuidado, no primeiro caso, de efectuar em dinheiro o pagamento da respectiva portagem, de forma a não deixar qualquer elemento que permitisse identificar o destino e o tempo da referida viagem."

            Finalmente, o libelo acusatório descrevia a forma como os pagamentos eram feitos a Hugo Marçal, que depois - antes ou depois dos actos - entregaria um envelope a Carlos Silvino, que pagava aos menores, ficando com o remanescente para si. O mesmo Hugo Marçal pagaria a Gertrudes Nunes uma contrapartida em dinheiro, pela disponibilização da sua casa para a prática dos abusos sexuais.

            Quanto à prova de toda esta requintada trama, a acusação assentava nas declarações das supostas vítimas.

 

A decisão instrutória

            A maioria dos arguidos - entre eles, Carlos Cruz - requereu a abertura de instrução.

            A decisão instrutória não manteve a acusação contra o arguido Paulo Pedroso, bem como contra os arguidos Herman José Krippahl e Francisco Alves, lavrando, nessa parte, despacho de não pronúncia.

            Relativamente ao enquadramento geral da rede informal constituída pelos restantes arguidos e quanto aos actos concretos atribuídos a Carlos Cruz, a pronúncia manteve a acusação nos seus precisos termos.

            A única diferença é que procedeu à "limpeza" do nome de Paulo Pedroso de todos os pontos onde, na acusação, ele figurava. A personagem de Paulo Pedroso passou a ser substituída pela referência a um adulto não identificado.

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            No que se refere à não pronúncia de Francisco Alves e Herman José Krippahl, a decisão parece pacífica.

            Francisco Alves fora acusado de lenocínio por ter cedido a sua casa a Manuel Abrantes, para que este nela sujeitasse alunos da Casa Pia à prática de actos sexuais. Porém, os autos só demonstravam que esse arguido era dono da casa onde supostamente Manuel Abrantes teria cometido abusos de que era acusado, não contendo o processo um único elemento - de qualquer espécie - que indiciasse que esse arguido teria conhecimento dessa alegada utilização. A acusação fora claramente temerária, pelo que tinha que claudicar logo ali.

            Quanto a Herman José Krippahl, o abuso sexual, que lhe era atribuído na acusação, teria supostamente ocorrido no dia 8 de Fevereiro de 2002, por altura de uma festa de Carnaval, a qual teria efectivamente existido. Só que nessa data Herman José Krippahl estava no Rio de Janeiro, tendo podido fazer prova disso mesmo. Não havendo outra prova e não tendo o ofendido vacilado na datação dos factos, a acusação também teria de soçobrar.

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Porém, quanto a Paulo Pedroso, a argumentação utilizada - quando comparada com a avaliação feita em relação aos outros arguidos - suscita a maior perplexidade. Isso não significa que a defesa de Carlos Cruz não comungue da tese de que Paulo Pedroso também é uma vítima inocente da enorme confabulação que foi a investigação do processo Casa Pia, como se acredita que foi. Aliás, a defesa de Carlos Cruz regozija-se com a não pronúncia de Paulo Pedroso, porque o mal dos outros nunca fez o bem de ninguém.

            A posição da juíza de instrução, Ana Teixeira e Silva, foi a de que o reconhecimento fotográfico efectuado pelas vítimas, supostamente abusadas pelo deputado socialista, suscitava controvérsia, designadamente pela qualidade da fotografia inicialmente exibida, pelo que, instalada uma fundada dúvida sobre "a qualidade e validade da identificação", se tinha de admitir que os ofendidos se haviam enganado quanto à mesma. Porém, o despacho judicial salientava que "equívoco" não é sinónimo de "mentira".

Ora, apesar das deficiências ocorridas, a verdade é que quatro jovens afiançaram repetidamente que Paulo Pedroso também seria um dos seus supostos abusadores. E só é possível "desconstruir" a fantasia desses rapazes, recorrendo a uma análise global dos seus depoimentos - onde naturalmente a questão do reconhecimento fotográfico também é um elemento do jogo -, o que podia ter sido feito, mas a senhora juíza de instrução não fez. Se o tivesse feito, isso repercutir-se-ia forçosamente na avaliação feita aos outros arguidos, com a consequência fatal de haver mais arguidos não pronunciados.

De resto, foi isso mesmo que fez o acórdão da Relação de Lisboa, de 9 de Novembro de 2005, de que foi relator o juiz desembargador António Rodrigues Simão, que, na sequência de recurso do Ministério Público e dos assistentes, manteve a decisão de não pronúncia de Paulo Pedroso. Tal acórdão não se funda apenas na deficiência do reconhecimento fotográfico. Pelo contrário, faz uma ponderação global dos testemunhos incriminatórios e conclui que as declarações prestadas padecem de vícios que afectam a sua credibilidade, pelo que não defere o recurso tendo em conta, em grande medida, essa avaliação, que, aplicada igualmente a Carlos Cruz e a outros arguidos, não deixaria de produzir juízo equivalente. Só que da decisão de pronúncia, que abrangia esses outros arguidos, não há recurso, como é sabido.

Em qualquer caso, embora discordando, até se admite - no campo de uma opção intelectual respeitável - que o juiz de instrução, num caso como o da Casa Pia, determinasse a pronúncia com base numa análise limitada acerca da coerência global dos depoimentos, remetendo para julgamento a avaliação final. É que o juiz de instrução não é o responsável pela investigação, cabendo-lhe apenas apreciar a sua viabilidade.

            Mas já parece despropositado, e até estranho, que Paulo Pedroso beneficiasse de uma "generosidade" que permitiu que a dúvida ocorrida quanto à qualidade da identificação - despida, repete-se, de uma avaliação global dos depoimentos -, o dispensasse de estar em julgamento com os outros arguidos, acusados pelos mesmos jovens, com referência aos mesmos períodos e à mesma casa de Elvas.

            Até porque houve situações apuradas na pronúncia - para além dos casos de Francisco Alves e de Herman José Krippahl - que bem mais justificariam - sem margem para dúvida razoável - uma decisão de não pronúncia.

            É manifestamente a situação de Carlos Cruz quanto a dois dos três jovens que o incriminam: LD e IM. Esses menores foram ouvidos pela juíza de instrução - sem a presença da defesa - e identificaram os nomes dos seus supostos abusadores, omitindo qualquer referência a Carlos Cruz (mas fazendo-a, um deles, expressamente quanto a Paulo Pedroso). Como é possível que, neste contexto, se tenha pronunciado Carlos Cruz quanto aos crimes alegadamente cometidos sobre dois menores que, ouvidos por aquela juíza de instrução nos termos que ela entendeu como convenientes, identificaram todos os seus supostos abusadores sem referirem a pessoa de Carlos Cruz, logo, por acaso, o mais conhecido de todos?

            Da mesma forma, é incompreensível a pronúncia de Manuel Abrantes pelos crimes que lhe foram atribuídos na pessoa do menor PP, quando tal jovem, ouvido pela juíza de instrução nos termos já referidos, afirmou - sem hesitação aparente - que, nas condições descritas na acusação, teria sido Carlos Cruz a abusar dele!

            Às vezes, o processo da Casa Pia mais parece o jogo dos quatro cantinhos...

 

A defesa

              A 4 de Novembro de 2004, a defesa de Carlos Cruz foi apresentada em tribunal.

A contestação orientou-se pelas seguintes linhas fundamentais:

  • A um tempo, a demonstração de que a prova exibida pela acusação - testemunhal, pericial e documental - não permitia formular, com um mínimo de rigor, um juízo de culpa relativamente à participação de Carlos Cruz no quadro de actuação pedófila que lhe era imputado;
  • Nesse segmento, procurava demonstrar-se a manifesta inconsistência da prova produzida, designadamente quanto ao alegado conhecimento que Carlos Cruz teria das vítimas e dos outros arguidos, particularmente Carlos Silvino;
  • A outro tempo, a defesa orientava-se na apresentação de álibis que comprovavam que, na sua óptica, era materialmente impossível ter estado em Elvas nas datas dos supostos abusos aí cometidos;
  • Nessa avaliação dos locais, procurava evidenciar-se a falta de plausibilidade da possibilidade dos abusos terem sido cometidos no prédio da Av. das Forças Armadas;
  • Na busca de um quadro explicativo para o comportamento dos jovens, a defesa sustentava ainda que a metodologia utilizada pela investigação tinha inquinado irremediavelmente a credibilidade dos depoimentos dos jovens, que, consciente ou inconscientemente, tinham sido levados a sincronizar os seus discursos de modo a encontrar uma história colectiva que envolvesse os arguidos do processo;
  • Finalmente, Carlos Cruz apresentava o seu passado e a natureza da sua personalidade, onde não se detectam características de funcionamento perverso compatível com práticas parafílicas.

 

            Valerá a pena sublinhar que Carlos Cruz nunca se refugiou em nenhuma teoria da cabala ou nunca se vitimou como alvo de uma perseguição pessoal, antes procurou explicar o que estava a acontecer pela errada metodologia utilizada pela investigação.

            Carlos Cruz sempre admitiu que as vítimas que o acusavam tinham sido efectivamente objecto de abusos de natureza sexual, mas algo as determinara a escolhê-lo como alvo, o que era alimentado por uma intensa campanha que mobilizava o país no combate ao horror da pedofilia. Disse-se na contestação apresentada: "O arguido não tem uma resposta que explique as motivações subjacentes a tão sinistro comportamento, resulte ele de sugestão, de inquinação, de efabulação, de pura perversidade, ou de qualquer outra causa. Mas também não lhe cabe fazer essa indagação, para o que não tem meios."

            Porém, logo se adiantou que a defesa não prescindia de demonstrar o processo de inquinação da prova produzida: "Mas há um dado cuja prova não se dispensa de fazer em julgamento: a metodologia utilizada pela investigação na abordagem destas alegadas vítimas violou objectivamente as regras técnicas que devem presidir à inquirição e ao exame de menores abusados sexualmente."

            E explicou-se o que tinha inquinado a investigação: "i) Realização de inquirições policiais desacompanhadas de pessoal técnico especializado e sem gravação de qualquer espécie, o que facilitou a existência de influências sugestivas ou persuasivas, mesmo inadvertidas; ii) Falta de acompanhamento das motivações dos jovens, que não foram indagadas; iii) Inexistência de valoração das influências mediáticas, que não foram consideradas; iv) Aceitação de "memórias recuperadas" como se fossem genuínas; v) Sincronização dos discursos de modo a encontrar uma história colectiva para contar; vi) Manifesta falta de avaliação dos meios familiares e sociais onde os jovens estavam inseridos."

            Finalmente, nessa linha argumentativa, criticou-se a forma como tinham sido efectuadas, na pessoa das jovens vítimas, as perícias médico-legais.

Nesse ângulo, sublinhou-se a especial gravidade, entre outros, dos seguintes aspectos: "i) Atribuição da sua realização a uma pessoa sem currículo nem experiência para a função, como decorre da circunstância de se tratar de uma recém licenciada e do facto de nunca até então ter realizado uma perícia a uma vítima de abuso sexual para fins de um processo de natureza criminal (como é reconhecido pela própria); ii) Completo desconhecimento das inquirições anteriormente efectuadas no âmbito policial, de forma a poder avaliar a sua influência no discurso dos jovens; iii) Ausência de meios de controlo de validade das declarações prestadas, através dos quais o respectivo conteúdo seja re-observado, tendo em atenção o grau de sugestibilidade da criança e adolescente, a sua história sexual e a consistência do relato clínico; iv) Inclusão de valorações psicológicas sem referência aos motivos que as expliquem; v) Omissão de verificação da capacidade de julgamento moral dos examinados, bem como ausência de análise da coerência interna e externa dos seus relatos; vi) Confusão entre credibilidade e veracidade; vii) Não realização de contra-provas aos testes efectuados; viii) Incapacidade de análise da estrutura de funcionamento dos jovens, que foi omitida; ix) Uniformização dos sujeitos objecto das perícias, que são, nas suas conclusões, basicamente idênticas."

Os dados estavam lançados. Ia começar aquele que acabou por ser o mais longo julgamento da história judicial portuguesa.

 

O julgamento e a alteração da pronúncia

              O julgamento começou a 25 de Novembro de 2004, sendo juíza presidente Ana Cardoso Peres e juízes adjuntos, José Manuel Lopes Barata e Ester Pacheco dos Santos.

            Tiveram lugar 462 sessões de audiência de julgamento, a maioria das quais decorreu de manhã e de tarde. Foram ouvidas mais de 900 pessoas. O processo principal terminou com 68.173 folhas (até à sentença) e tem dezenas de apensos, com milhares de documentos.

            O Ministério Público - representado pelo procurador João Aibéo Nogueira - iniciou as suas alegações finais a 24 de Novembro de 2008. Seguiram-se as alegações dos restantes sujeitos processuais. Houve réplicas. A 3 de Fevereiro de 2010,encerrava-se esse capítulo e iniciava-se a tomada das declarações finais dos arguidos.

            Seguiram-se 20 longos meses até à leitura da sentença, que, depois de vários adiamentos da responsabilidade exclusiva do tribunal, ficou marcada para 3 de Setembro de 2010. Porém, o acórdão só foi disponibilizado às partes a 13 de Setembro.

            Esses 20 meses foram entrecruzados de sessões de audiência de julgamento, nunca distanciadas de mais de 30 dias. É que, segundo a lei processual portuguesa, interrupções de audiência durante mais de 30 dias determinam a perda da prova produzida, com a consequência - terrível, in casu - de ter de se retomar o início do julgamento. Durante esse período, as audiências foram sendo preenchidas com a produção pontual de prova que o tribunal ia determinando, mas, de facto, numa grande parte das sessões, o tribunal limitou-se a "abrir" documentos que já constavam do processo, os quais eram mostrados aos sujeitos processuais. Era uma espécie de ritual que o meio judicial bem conhece.

            Em consequência disso, durante esses 20 meses, por vicissitudes várias, cada uma das partes teve a oportunidade de alegar mais quatro vezes. E a defesa de Carlos Cruz não deixou de aproveitar cada uma delas, exortando a consciência dos senhores juízes a que não sucumbissem a qualquer preconceito e a que, com base numa racionalidade esclarecida, fizessem a justiça que todos esperavam.

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            Aconteceu, porém, que, logo depois de findas as alegações finais, a 5 de Fevereiro de 2009, o Ministério Público requereu 45 alterações aos factos constantes do despacho de pronúncia, o qual consubstanciava, afinal, a acusação movida quanto aos arguidos e, em face da qual, estes tinham apresentado a sua defesa.

"Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa " - eis o comando do art. 358º nº 1 do Código de Processo Penal.

            Compreende-se que, por exigência do princípio da verdade material, a lei processual penal admita que seja admissível a ocorrência de alterações pontuais à acusação ou pronúncia, sob pena do processo penal poder ficar refém de um erro da acusação ou da pronúncia que, não sendo corrigido, comprometeria a justiça do caso concreto. Não podia ser de outro modo, em termos de um processo equitativo.

            Porém, o tempo e a forma utilizados pelo Ministério Público no processo da Casa Pia é que já não se admitem, como consta da resposta que Carlos Cruz logo apresentou, a 20 de Fevereiro de 2009.

            Para além de se ter sustentado a inutilidade do pedido, porque a prova produzida já era bastante para o juízo que o tribunal devia fazer acerca da completa insubsistência da acusação formulada, o requerimento do Ministério Público padecia ainda de absoluta falta de fundamentação, de não ter sido deduzido em prazo razoável e de violar o princípio de um processo equitativo.

Vejamos a argumentação então desenvolvida.

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Na verdade, o Ministério Público não poderia ter reduzido o seu requerimento a um simples "onde se lê (...) deve ler-se" e deveria ter pelo menos especificado "conforme consta dos depoimentos X, Y e Z, dos documentos A, B e C, e do esclarecimento do perito T, etc.".

Com efeito, a norma legal em causa, interpretada sem a exigência da fundamentação, por forma clara e inequívoca, daquilo que em concreto justifica a alteração requerida, não salvaguarda as garantias de defesa, nem sequer o princípio do contraditório. Tal interpretação conduziria a que tivesse de ser, nesta fase, o arguido a ter de estabelecer um nexo entre as alterações requeridas e prova produzida em audiência.

Ora, não impende sobre o arguido a obrigação de suprir as deficiências de fundamentação do Ministério Público e muito menos o ónus de integrar aquilo que o Ministério Público não disse e devia ter dito. Acresce que o volume e complexidade do presente processo ainda mais exigiria que o Ministério Público tivesse estabelecido inequivocamente um nexo entre as alterações sugeridas e a prova resultante do decurso da audiência.

Não deixa de se assinalar o princípio do dever de cooperação leal, aberta e irrestrita dos sujeitos processuais com a descoberta da verdade material. Tal princípio surgirá com redobrada força quando se trata do Ministério Público que, não sendo parte, como gosta de dizer, mais vinculado estaria a uma lealdade e limpidez que não transparecem do seu requerimento.

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Por outro lado, a regra legal foi interpretada pelo Ministério Público no sentido de as alterações poderem ser requeridas em qualquer momento do decurso da audiência - mesmo após as alegações -, independentemente do momento em que se verificou a desconformidade entre a prova que foi sendo produzida e a pronúncia.

Contudo, um processo mastodôntico como o presente, com um julgamento que durava há 4 anos e 3 meses, impõe uma aplicação cuidada da norma, que salvaguarde as garantias de defesa do arguido. Assim, por exemplo, o Ministério Público, ao alterar em 2009 a pronúncia de 2004, para que a data de ocorrência de um facto passe de um sábado à tarde para qualquer dia da semana do último trimestre de 1999, pode estar a comprometer em absoluto a possibilidade da defesa conseguir obter dados (por exemplo, informações das operadoras telefónicas),  que ainda poderiam ter sido obtidas em tempo útil e que hoje podem já não existir.

Assim sendo, a interpretação da lei deve ser feita em harmonia com as garantias de defesa do arguido e as exigências de um processo equitativo. A interpretação que julgamos ser a mais fiel ao espírito da lei e conforme à Constituição só pode ser: sempre que, no decurso da audiência, se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia, esta deve ser comunicada ao arguido num prazo razoável.

Sem necessidade de outras explicações, parece evidente que a formulação do pedido em apreço em 2009 não respeitou aquele prazo razoável, sendo por isso intempestiva. Aliás, algum pudor até terá levado o Ministério Público a refugiar-se num "inglês técnico", sustentando que o pedido fora formulado no "timing"adequado.

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É sabido que o processo penal tem de obedecer às exigências de um processo equitativo, que o art. 20º nº 4 da Constituição ressalva e o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem igualmente impõe. É à luz desse princípio que devem ser observadas as garantias de defesa do arguido.

Essa exigência não pode permitir que, sob o seu respaldo, se altere de tal forma a pronúncia que se coloque o arguido perante uma nova acusação que, por força do número e da importância das alterações introduzidas, implique uma verdadeira alteração qualitativa da pronúncia. Admitir-se tal possibilidade corresponderia a permitir julgar o arguido por um crime diverso daquele pelo qual a acusação foi deduzida, afrontando-se as garantias de defesa e ofendendo-se ainda o princípio do acusatório. Era o que se passava com o requerimento do Ministério Público.

O local fulcral, onde - segundo a acusação - a maioria dos abusos sexuais teriam sido praticados, é a vivenda de Elvas, que pertence à arguida Gertrudes Nunes. É aí, designadamente, que são imputados ao arguido Carlos Cruz a maioria dos crimes que o incriminariam.

Pois bem, a admitir-se tal requerimento, as datas que a pronúncia identificou como datas dos presumíveis abusos cometidos pelo arguido em Elvas seriam - após mais de 4 anos de julgamento e produzidas as alegações - todas alteradas!

E as mudanças não são de detalhe: os fins-de-semana passam a qualquer dia de semana, os sábados a domingos, mudam-se os meses. E, relativamente a alterações comunicadas a outros arguidos, mudaram-se, às vezes, até os anos e, nalguns casos, mesmo os locais...

Na verdade, estaríamos - no fim do julgamento - perante uma nova pronúncia.

Estaríamos a sujeitar os arguidos a um novo julgamento por outros crimes que não aqueles pelos quais eles vinham acusados.

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            O tribunal nunca despachou esse requerimento do Ministério Público, deferindo-o ou indeferindo-o. Porém, nove meses depois de encerradas as alegações finais, durante três meses - a 6/11/2009, a 23/11/2009, a 14/12/2009 e a 11/01/2010 -, o tribunal comunicou aos arguidos 12 alterações à matéria de facto que constava da pronúncia, tendo pelo meio avisado que ainda procederia a mais alterações, do que depois veio a desistir.

            Alarmado com a inusitada sucessão de modificações da pronúncia, Carlos Cruz anunciou, ainda em Dezembro de 2009, que ponderava apresentar um pedido de aceleração processual - com vista à obtenção de um despacho final acerca do pedido de alterações efectuado pelo Ministério Público -, o que veio a apresentar no mês de Janeiro seguinte. Perante tal iniciativa, o tribunal apressou-se a informar que já tinha comunicado as alterações que considerava necessárias, sem que, no entanto, se tivesse expressamente pronunciado sobre o pedido do Ministério Público. Em qualquer caso, o assunto ficou esclarecido: não haveria mais alterações.

No que respeita a Carlos Cruz, não havia nenhuma alteração que lhe dissesse directamente respeito, mas, dos novos factos descritos, havia forçosamente implicações para a sua própria defesa, porque se reportavam a situações em que o arguido estaria supostamente envolvido.

Tais alterações - embora em menor grau - padeciam dos vícios já acima assinalados quanto ao requerimento do Ministério Público: omissão da fundamentação, falta de comunicação em prazo razoável, violação do princípio de um processo equitativo.

Perante a posição das defesas, o tribunal reconheceu que se impunha fundamentar as alterações. Porém, ao deferir a irregularidade cometida, limitou-se a enunciar um extenso rol de meios de prova, onde se indicavam, a eito, sem qualquer critério ou explicação, as declarações prestadas pelos arguidos e pelos assistentes em audiência de julgamento, o depoimento das testemunhas ouvidas em tribunal (particularmente todos os directores, educadores, monitores, porteiros, professores e administrativos da Casa Pia), o teor de milhares de documentos dos apensos dos autos e do processo principal.

Como é evidente, tal alegada fundamentação é uma aparência ou simulacro de fundamentação e não uma verdadeira fundamentação, a qual tem sempre de permitir, ainda que de forma elementar e sumária, a compreensão da razão de ser da comunicação efectuada. Com efeito, ninguém ficou elucidado, ainda que de forma rudimentar, acerca do caminho intelectual que levou o tribunal a proferir o despacho em causa.

O dever de fundamentação dos actos judiciais - de uma verdadeira, mesmo que sumária, fundamentação - decorre da lei processual (art. 97º nº 5 do Código de Processo Penal), da Constituição da República Portuguesa (art. 205º nº 1) e da lei internacional (art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). O que está em causa é tão-somente a questão da compreensão da decisão.

O problema foi suscitado pela defesa de Carlos Cruz, indeferido pelo tribunal, cujo despacho já foi confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, estando pendente de recurso no Tribunal Constitucional. Se necessário, não se deixará de recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

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            No entanto, perante as comunicações efectuadas, a defesa de Carlos Cruz - assim como outras defesas - apresentou nova prova, para contrariar as novas versões apresentadas.

            Toda a prova apresentada por Carlos Cruz foi recusada liminarmente pelo tribunal, com o extraordinário e fundamental argumento que o tribunal já tinha permitido que fossem feitas todas as perguntas ou requeridas diligências "sem limitação que pudesse pôr em causa a possibilidade de investigação de os factos terem ocorrido em períodos ou locais diferentes dos descritos no despacho de pronúncia".

            Leu-se e não se acreditou... É que a defesa organizou-se em função do que constava da pronúncia e não do que passou a constar. E é à defesa - e não ao tribunal - que cabe definir a sua actuação estratégica em face do que consta da acusação ou da pronúncia.

            Naturalmente que foi interposto recurso do despacho que indeferiu essas diligências, o qual está pendente. Está em causa a inquirição de 27 testemunhas, que frequentaram, trabalharam ou viveram no prédio da Av. das Forças Armadas - relativamente ao qual se alteraram dados da pronúncia em termos que podiam afectar a defesa de Carlos Cruz -, bem como a reinquirição do menor aí envolvido.

 

A sentença

              A sentença do processo da Casa Pia está datada de 3 de Setembro de 2010.

Nesse dia - apesar da afectação exclusiva ao processo dos juízes que compunham o tribunal (para a juíza-presidente durante todo o julgamento e para os juízes adjuntos até cerca de um ano antes) e mau grado duas desmarcações de agendamentos expressamente efectuados para a leitura do acórdão - o tribunal não disponibilizou aos sujeitos processuais uma cópia da sentença.

Mais grave: não fez a leitura de uma verdadeira súmula da sua fundamentação - como exige o art. 372º nº 3 do Código Processo Penal -, limitando-se a um arremedo genérico de considerações, sem que, quanto aos crimes imputados a Carlos Cruz, lhes tenha feito qualquer referência concreta, que lhe permitisse apreender - mesmo de forma sumária - as provas e os fundamentos por que fora condenado.

Enquanto, em directo na televisão e na presença de centenas de jornalistas portugueses e estrangeiros, eram anunciados, urbi et orbi, os factos provados - com minuciosa descrição dos actos sexuais supostamente praticados -, o número de crimes e as penas de prisão, o tribunal, quanto aos fundamentos da decisão, dizia aos arguidos para a irem buscar daí a cinco dias, na quarta-feira seguinte.

O auto-de-fé decorria para descanso do país, mas ao arguido nem eram dados a conhecer os argumentos e as provas por que fora sentenciado.

Aquilo que aconteceu foi um retrocesso jurídico e civilizacional que não pode ser calado. O advogado saiu do Campus da Justiça com a dolorosa sensação de que voltara um tempo de trevas.

Seguiram-se dez penosos dias, até que - de adiamento em adiamento - foi, finalmente, a 13 de Setembro de 2010, depositado o acórdão de que vai interposto o presente recurso.

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            A sentença deu como não provada a base factual que se reportava à estrutura da rede informal que vinha descrita na acusação, bem como o quadro de relações que aí se estabelecia quanto às conexões entre os co-arguidos.

            O tribunal deu como assente que Carlos Silvino conhecia os outros arguidos e lhes proporcionava encontros sexuais. Porém, no mais e quanto a Carlos Cruz, o tribunal tão-somente deu como provado um implícito conhecimento entre Carlos Cruz e Hugo Marçal, uma vez que seria este quem o receberia na casa de Gertrudes Nunes, aquando das suas deslocações a tal local, a fim de ter actos sexuais com os menores.

            A "casa das orgias" - onde supostamente uma rede de homens poderosos abusava de um vasto número de menores, que para aí seriam transportados "às carradas" - acabava como um lugar modesto, onde Hugo Marçal e Carlos Cruz teriam abusado de dois ou três adolescentes, perante o assentimento de Gertrudes Nunes, que, a troco de dinheiro, lhes facilitava a vida.

            Todos os arguidos foram condenados a penas de prisão efectiva, por parte dos crimes de natureza sexual por que vinham pronunciados, bem como a parte dos pedidos de indemnização civil formulados pelos assistentes. Apenas se ditou a absolvição da arguida Gertrudes Nunes, com um fundamento técnico decorrente de uma alteração do tipo legal do crime de lenocínio, mas dando como provado o seu envolvimento consciente na disponibilização da casa para actos de abuso sexual.

Carlos Cruz foi condenado, pela prática de três crimes de abuso sexual de criança, a uma pena de sete anos de prisão. Foi ainda condenado numa indemnização de €25.000,00, a favor de cada um dos dois rapazes a que se reportavam os crimes por si presumivelmente cometidos.

Relativamente aos crimes cometidos na Av. das Forças Armadas, o tribunal deu como provada a prática de dois crimes cometidos sobre o menor LM, nas datas referidas na pronúncia, dando ainda como assente que, na primeira dessas ocasiões, Carlos Cruz teria igualmente abusado de JPL, por facto por que não respondeu por ter caducado o direito de queixa.

Contudo, enquanto na acusação se estabelecia que Carlos Silvino teria sido contactado por Carlos Cruz para o efeito de assegurar a deslocação dos menores ao local, agora passou a constar que essa relação foi efectuada "por contacto não concretamente apurado".

Relativamente aos crimes cometidos em Elvas, o tribunal deu apenas como cometido um dos crimes constantes da pronúncia, o qual teria sido cometido na pessoa do menor LD, mas, enquanto a acusação se reportava a um sábado do último trimestre de 1999, a sentença estabelecia que tal acto teria ocorrido "num dia indeterminado do último trimestre do ano de 1999".

No mais, o tribunal deu como não provados os crimes cometidos nas pessoas dos menores LM e IM, que, segundo a acusação, teriam sido cometidos num sábado de Fevereiro ou Março de 2000. Por outro lado, deu como provado o abuso cometido sobre o menor LM, então já com 14 anos, no último trimestre do ano 2000, mas não condenou Carlos Cruz por esse facto, uma vez que já não lhe seria legalmente aplicável o regime que, à data do facto, estava consagrado para a prática de actos homossexuais com adolescentes, entretanto revogado, na sequência, de resto, de ter sido julgado inconstitucional.

Finalmente, quanto às outras situações atribuídas a Carlos Cruz, mas pelas quais ele não respondia por ter caducado o direito de queixa - razão pela qual só era incriminado Carlos Silvino pela prática de um crime de lenocínio -, o tribunal não deu como provada nenhuma, a não ser a que teria a ver com um suposto abuso praticado por Carlos Cruz numa casa em Cascais.

Porém, enquanto na pronúncia, o arguido Carlos Silvino teria levado o menor JPL ao Campo Pequeno, onde o aguardava Carlos Cruz, que, em seguida, o teria transportado até Cascais, a uma casa onde o arguido Jorge Ritto o esperava e de que teria disponibilidade, na sentença, o local de encontro teria sido nas traseiras do colégio Pina Manique e o destino seria uma qualquer casa de Cascais, sem qualquer relação com Jorge Ritto.

 

O objecto do recurso: i) nulidade da sentença

              Sententia debet esse conformis libello. Significa o brocado latino que a sentença não pode condenar para além da acusação. Aqui reside a essência do chamado princípio do acusatório, que a Constituição Portuguesa expressamente acolhe (art. 32º nº 5).

            Compreende-se que assim seja, porque a defesa responde a uma acusação e é, em função dela, que assume a sua posição processual. Se, no decurso do julgamento, houver necessidade de corrigir factos não substanciais da acusação, de forma a garantir a obtenção da verdade material, aí está o regime do art. 358º do Código de Processo Penal, que implica uma comunicação da alteração e a concessão de um prazo para que o arguido apresente a sua defesa.

            A sentença que condene, por uma factualidade diferente da que consta da acusação - se a modificação for relevante para a defesa do arguido e para a decisão da causa e não tiver ocorrido a comunicação prevista nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal -, é inapelavelmente nula. É o que dispõe o art. 379º nº 1-b) do Código de Processo Penal.

            Ora, no que diz respeito a Carlos Cruz, o acórdão é nulo, por violação destas disposições legais.

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            Carlos Cruz foi acusado e pronunciado pela prática de um abuso sexual na pessoa do menor LD, de 13 anos de idade, supostamente ocorrido num sábado do último trimestre do ano de 1999, antes do Natal, na vivenda de Elvas (cfr. ponto 6.7.2.1 da pronúncia).

            Em função da acusação, Carlos Cruz passou anos da sua vida a reconstituir o que teria feito nos períodos a que se reportava a presumível prática de crimes cometidos em Elvas, na casa de Gertrudes Nunes.

            Na contestação, apresentou esmerada demonstração dos factos da sua vida praticados nesses períodos, designadamente por causa da acusação de LD. Juntou centenas de documentos (dados telefónicos, registos de utilização do cartão de crédito, vias verdes, fotografias, recortes de jornais e revistas, etc., etc.), arrolou testemunhas e deu a sua própria versão sobre aquilo que tinha podido restabelecer dos seus passos nesses dias.

            Foi assim com estupefacção que leu, no acórdão recorrido, que o tribunal deu como provado que o crime em apreço teria sido cometido "num dia indeterminado do último trimestre do ano de 1999" (cfr. factos provados sob o nºs 125, 125.1 a 125.8).

            E, analisando a análise crítica da prova, isso terá decorrido do facto do tribunal ter dado crédito à versão do jovem de que esses abusos teriam ocorrido, nesse período, mas a um dia da semana.

            Isto é, Carlos Cruz foi acusado de ter cometido um crime num sábado indeterminado do último trimestre de 1999. Defendeu-se disso mesmo. Todavia, acabou condenado por ter praticado tal crime nesse período, mas a um dia da semana.

            É uma evidência que não precisa de outras explicações. Aliás, nessa observação, tinha razão o Ministério Público, quando, a 5 de Fevereiro de 2009, pediu a alteração da descrição factual em causa, de forma a abarcar todos os dias da semana desse trimestre. Isto, sem prejuízo, como é óbvio, dos vícios de que padecia tal requerimento, como atrás foi assinalado. Só que o tribunal não só não deferiu o pedido do Ministério Público, como não tomou oficiosamente a iniciativa de previamente comunicar ao arguido a alteração da pronúncia nesse particular, ao abrigo do regime já apreciado do art. 358º nº 1 do Código de Processo Penal.

            O acórdão, no segmento em análise, é nulo, irremediavelmente nulo.

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            Mas também sofre de idêntico vício a parte do acórdão que se reporta aos crimes atribuídos a Carlos Cruz no prédio da Av. das Forças Armadas. Não será com a mesma intensidade do caso anterior, que não tem discussão. Devemos reconhecê-lo, por honestidade intelectual e até por mera inteligência.    Em qualquer caso, o vício existe e a defesa de Carlos Cruz tem de o arguir.

            Nas situações de abuso supostamente ocorridas na Av. das Forças Armadas, em Lisboa, em qualquer uma das duas situações aí abrangidas, a pronúncia descreve as circunstâncias da ocorrência dos crimes através do enunciado de que "o arguido Carlos Cruz contactou o arguido Carlos Silvino e pediu-lhe que levasse a uma residência sita na Av. das Forças Armadas (...) dois menores da CPL, a fim de os sujeitar à prática de actos sexuais consigo" (1ª situação) e de que "decorridos cerca de um ou dois meses, o arguido Carlos Cruz voltou a contactar com o arguido Carlos Silvino, e pediu-lhe novamente que levasse à morada mencionada um menor da CPL, a fim de sujeitar o mesmo à prática de actos sexuais" (cfr. ponto 4.3.1 da pronúncia).

            Em face desses factos, uma das linhas da defesa de Carlos Cruz foi a de demonstrar que não conhecia Carlos Silvino, nem nunca, directa ou indirectamente, o teria contactado para o que quer que fosse. Isso é dito logo na contestação e decorre daquilo que se passou na audiência de julgamento. Veja-se, por exemplo, a comparação efectuada aos registos de tráfico telefónico de um e de outro, bem como a sistemática impugnação de qualquer ponto por onde se pudesse pretender estabelecer uma ligação que realmente nunca existiu. Quando Carlos Silvino - num segmento das suas declarações que mais parecia um momento de uma ópera bufa - pretendeu que a ligação se fazia através do porteiro Graciano Nunes, já falecido e reformado desde os anos 80, a defesa de Carlos Cruz fez juntar aos autos a documentação que comprovava o cariz delirante daquela mentira.

            Nenhuma dúvida, pois, quanto à circunstância de que, relativamente a tais crimes, foi relevante para a defesa de Carlos Cruz a sustentação de que, não conhecendo, nem nunca tendo estabelecido qualquer ligação com Carlos Silvino, não podia ter ocorrido o contacto descrito na acusação, razão pela qual, entre várias outras, também se tinha de concluir que o crime não fora cometido.

            Pois bem, em relação a ambas as situações, o que o tribunal deu como provado foi que Carlos Silvino levou os menores àquelas moradas para o efeito de serem abusados por Carlos Cruz "por contacto não concretamente apurado" (cfr. factos provados sob os nºs 106 e 106.12).

            Tal alteração não substancial da pronúncia devia ter sido comunicada a Carlos Cruz, ao abrigo do art. 358º nº 1 do Código de Processo Penal, nos termos do regime já analisado, a fim de que Carlos Cruz ponderasse esse dado novo na sua defesa, o que não aconteceu.

            Era um elemento relevante para a defesa de Carlos Cruz. Se o contacto não fora estabelecido entre Carlos Cruz e Carlos Silvino, então como fora? Perante essa comunicação, a defesa de Carlos Cruz poderia, por exemplo, ter ensaiado a tentativa de demonstrar que não teriam existido ligações telefónicas entre Carlos Cruz, Carlos Silvino e D. Odete Ferreira, a residente - que chegou a ser constituída arguida - na fracção onde os menores dizem que os abusos foram cometidos: o 2º Ft. do nº 111 da Av. das Forças Armadas. Ou de que não teriam ocorrido telefonemas entre Carlos Silvino e qualquer um dos números telefónicos atribuídos às residências daquele prédio ou aos seus residentes ou utentes, o que seria possível, tendo em conta que do processo consta a informação dos registos telefónicos de Carlos Silvino naquele período e outros dados poderiam ser alcançados através da intervenção das operadoras telefónicas ou do cruzamento dos milhões de registos que se encontram incorporados nos autos ou à sua ordem.

            Pelo contrário, na parte em que a sentença dá como provado que, na ocasião, o transporte de Carlos Silvino e dos jovens foi efectuado "em veículo" não especificado, quando na acusação se refere que foram num Fiat 127, já a alteração - embora decorrente dos depoimentos contraditórios dos intervenientes, o que importa para a apreciação da congruência dos relatos - não foi manifestamente relevante para o exercício da defesa, que não se baseou na circunstância de ter sido utilizado um ou outro carro. Nessa situação, em que a alteração não condiciona a defesa, não faz sentido que, em nome de um qualquer formalismo, a modificação operada tenha de ser previamente participada ao arguido.

            Em suma, tendo Carlos Cruz sido condenado com base numa circunstância de modo diferente da que constava da pronúncia - passando a ser considerado que a ligação entre Carlos Silvino e Carlos Cruz se deu "por contacto não concretamente apurado", sendo esse elemento relevante para a defesa, como era -, sem que se tenha  procedido à prévia comunicação prevista no art. 358º nº 1 do Código de Processo Penal, o acórdão - nos segmentos em pauta - é igualmente nulo.

 

O objecto do recurso: ii) impugnação da matéria de facto

              Todavia, a questão central do recurso é a impugnação da matéria de facto dada como assente quanto a Carlos Cruz, com base na qual este foi condenado pela prática de três crimes de abuso sexual de crianças.

            É esse o objecto de praticamente tudo o mais que vai escrito nestas alegações.

            Carlos Cruz não conhece nenhum dos jovens a que a sentença se refere como objecto das suas práticas sexuais. Nunca esteve com eles em lado nenhum. Não conhecia - até se ter encontrado com eles na prisão - nenhum dos outros co-arguidos. Nem sequer sabia que eles existiam. Nunca esteve envolvido em actos de abuso sexual de crianças ou adolescentes. Nunca entrou no prédio da Av. das Forças Armadas, nem na vivenda de Elvas. Só conhece esses locais através das fotografias e filmes que constam deste processo.

            Pelo exposto, impugna a matéria de facto que o tribunal julgou como provada, com referência ao seu suposto relacionamento com Carlos Silvino, Hugo Marçal e Gertrudes Nunes, aos supostos actos sexuais praticados com os menores LM, LD e JPL, ao seu suposto conhecimento desses menores, às suas supostas deslocações à Av. das Forças Armadas, à vivenda de Elvas ou a qualquer outro local onde supostamente tivesse por si sido praticado qualquer acto de abuso sexual.

Tal factualidade é a que consta dos factos provados e assentes no acórdão recorrido sob os nºs 106 a 106.22, 113 a 116, 120 a 124, 125 a 127 e 131 a 135.2, o que se concretiza para os efeitos do art. 412º nº 3-a) do Código de Processo Penal, que impõe a especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, quando o recorrente pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, como é o caso.

Determinando igualmente a lei, na alínea b) do nº 3 do mesmo art. 412º, que, nesse caso, o recorrente tem de indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, desde já se adianta que essa especificação irá sendo feita ao longo da motivação do recurso, através da referência ao consignado na acta, quando se trate de provas que tenham sido gravadas, ou por remissão para a numeração do processo principal ou dos apensos, quando se trate de prova documental ou pericial.

 

O objecto do recurso: iii) a pena

              Qualquer pena de prisão é quase irrelevante para Carlos Cruz. O que o amachuca, destrói, indigna, dói, angustia, revolta, massacra e faz sofrer é que seja julgado culpado de práticas tão hediondas, com as quais nada tem a ver. E que tudo isso faça parte da herança que tem para deixar à mulher e às filhas. Essa é que é a pena que para ele conta.

            Porém, por estrito dever de patrocínio, o advogado não pode deixar de arguir - ainda que em duas singelas linhas - a natureza excessiva da pena que foi aplicada a Carlos Cruz, uma vez que o tribunal, em qualquer caso, não utilizou criteriosamente os factores de ponderação na determinação da medida da pena, como estipula o art. 71º nº 2 do Código Penal, designadamente as suas condições pessoais, a sua conduta anterior e posterior aos factos e a circunstância de já estar a ser julgado - e, no fundo, "preso" à ordem deste processo, que tomou conta da sua vida e da sua família - vai para oito anos.

 

O objecto do recurso: iv) os recursos interlocutórios

              Uma das lendas que o processo da Casa Pia fez nascer foi o da existência de dezenas ou centenas de recursos interlocutórios que estariam pendentes e afogariam o Tribunal da Relação, mal o processo lá chegasse. Recursos que demonstrariam a extrema litigiosidade dos sujeitos processuais - pensando obviamente nos "maus da fita" que seriam os advogados da defesa dos arguidos "poderosos" e "ricos" - e uma vontade persistente de entorpecer a acção da justiça. Ainda no último Verão, uma senhora juíza assegurava, num jornal de referência, que haveria 200 recursos à espera de "subir".

É uma história do género daquela que se conta acerca dos milhões de ratos nas caves do convento de Mafra.

Pois bem, o número de recursos pendentes não deve ser muito superior às duas dezenas. Quanto a Carlos Cruz, há sete recursos pendentes, o que dá uma média inferior a um por ano.

Dois deles são já posteriores às alegações finais. Um referente à falta de fundamentação do despacho que comunicou a alteração à pronúncia (esse, em rigor, até já subiu e está no Tribunal Constitucional). Outro relativo ao indeferimento das diligências de prova requeridas após tal comunicação, a que já atrás nos referimos.

Dois outros são referentes a actos anteriores ao início da audiência de julgamento. Um respeitante a vícios técnicos arguidos na instrução. Outro ao despacho que validou os actos de instrução do juiz Rui Teixeira, que violara o princípio do juiz natural.

Finalmente, há três recursos de actos produzidos ao longo de cinco anos de audiência de julgamento, os quais têm, no essencial, a ver com o acesso a documentação do inquérito, cuja leitura foi impedida na audiência de julgamento, o que a defesa de Carlos Cruz entende que é crucial para a comprovação da sua inocência.

Dentre estes, como o mais importante e decisivo para o destino deste processo, está o recurso interposto do despacho que não admitiu a leitura das declarações prestadas no inquérito pelas vítimas/assistentes que o incriminam, seguida da confrontação dos jovens com as contradições, daí decorrentes, relativamente àquilo que disseram em audiência de julgamento. Não tendo essa leitura sido autorizada pelo Ministério Público e pelos assistentes, ao abrigo do art. 356º do Código do Processo Penal, que, no plano literal, faz depender essa leitura, e subsequente valoração do que dela resultar, da não oposição de nenhum sujeito processual, o tribunal indeferiu o pedido.

Só que, para a defesa, essa norma assim interpretada - como, aliás, prática comum nos tribunais portugueses - é iníqua, inconstitucional e afronta a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Tal regra - com a configuração e interpretação que tem sido adoptada - deve ser "varrida" do processo penal português. Enquanto durar, sob o seu respaldo, continuarão a ser condenados inocentes e absolvidos culpados. Vale a pena dizer algo mais sobre esta matéria, até porque isso tem implicações na organização deste recurso.

 

O objecto do recurso: v) o nefasto art. 356º do Código de Processo Penal

            Cabe, então, avaliar a repercussão do art. 356º do Código de Processo Penal no julgamento do processo Casa Pia.

            A disposição legal consagra - em geral - a regra de que, em audiência de julgamento, só podem ser valoradas as declarações produzidas em inquérito, se nenhum sujeito processual se opuser à sua leitura, o que tem sido julgado como um critério absoluto, que garantiria a supremacia do princípio da imediação.

            Ora, o princípio da imediação, por mais importante que seja e é, uma vez que faz sobrelevar a genuidade da prova produzida durante o julgamento, não é, nem pode ser, intocável, devendo adequar-se ao princípio cardeal, que é o princípio da verdade material. Tem, pois, de se encontrar uma solução equilibrada que permita que, em determinadas situações - seja a favor da acusação seja a favor da defesa -, seja possível assegurar a valoração da prova produzida no inquérito, por exemplo, para avaliar a credibilidade de relatos incriminadores, designadamente quando para isso possa ter contribuído a existência de mecanismos de sugestão, inquinação ou até de manipulação que subverteram a dinâmica normal do processo.

            É esse o caso do processo Casa Pia.

Carlos Cruz e os co-arguidos foram acusados e pronunciados com base em declarações de alegadas vítimas produzidas em inquérito.

Chegada a hora do julgamento, essas mesmas pessoas - que viveram um processo mediático invulgarmente intenso - alteraram, a seu bel-prazer - com consciência ou sem ela -, o que antes disseram. Assim, os arguidos podem ser condenados com base em relatos significativamente distintos daqueles outros que serviram para os acusar, ainda por cima produzidos pelas mesmas pessoas, as quais até são aquelas que deles se queixam.

Ninguém - com um mínimo de bom senso e sentido de justiça - pode aceitar esse disparate. Passe a violência da expressão. Mas é isso mesmo, é um disparate. Não se conhece qualquer outra ordem jurídica de um país civilizado onde isso possa acontecer. A persistir a interpretação legal que, neste caso, impede o acesso às declarações efectuadas durante o inquérito - dos três ou quatro jovens em que assenta a condenação de Carlos Cruz -, estaremos perante um acto da maior gravidade, que tem de ser levado a instâncias internacionais, que obriguem o Estado Português a alterar o que é insustentável.

No processo Casa Pia, a prova da acusação radica basicamente nas declarações das vítimas, sendo verdadeiramente crucial a avaliação da sua credibilidade.

Antes de serem ouvidos pelos peritos médicos, os jovens em causa foram longamente inquiridos na Polícia Judiciária, sem enquadramento ou apoio de psicólogo ou psiquiatra, em termos que não respeitaram os procedimentos adequados à inquirição de jovens abusados, como se extrai, aliás, do que, na audiência de julgamento, narraram os próprios agentes daquela polícia.

Por outro lado, as perícias médicas, que tiveram lugar em 2003, não tiveram acesso - ao contrário do que é habitual e aconselhável - às inquirições prestadas perante a Polícia Judiciária ou Ministério Público, como neste julgamento foi reconhecido pelos peritos que as efectuaram e, de resto, decorre do seu próprio teor.

É consensual na doutrina médico-legal que as primeiras inquirições de jovens abusados podem ser determinantes para a formação do seu discurso, podendo ser um factor de sugestão. É igualmente consensual que elementos externos, designadamente por via da intensa mediatização do processo, podem influenciar a memória ou a postura desses jovens.

Todos os peritos ou consultores técnicos, ouvidos durante a audiência de julgamento, alertaram ou esclareceram o tribunal acerca do risco da ocorrência dessa acção de sugestão, reconhecendo a importância do conhecimento de todo o percurso discursivo desses jovens, desde que começaram a depor.

Os Profs. Pio de Abreu, Francisco Santos Costa e Cristina Vilares de Oliveira, que - em parecer que se encontra junto aos autos - revelam ter tido oportunidade de consultar os autos de algumas das vítimas/assistentes durante o inquérito - o que pode ser valorado no julgamento nos termos do que o tribunal já definiu -, concluíram no sentido de que a forma como essas entrevistas ocorreram pode ter inquinado o discurso dos jovens.

Sem descer a detalhes, não pode deixar de se referir, que, durante o inquérito, os jovens depuseram, em aspectos fundamentais, de forma absolutamente divergente daquilo que pelos próprios foi dito em audiência de julgamento. A título de exemplo, anote-se: i) Que Francisco Guerra - a fls. 155 -, quando, pela primeira vez, relata a sua participação no chamado esquema dos abusos sexuais, se refere a uma única deslocação a Elvas no ano de 2002, a acompanhar Carlos Silvino e sem referência a qualquer situação de abuso sexual, enquanto, em audiência de julgamento, localizou abusos sexuais, nessa cidade, a partir de 1999; ii) Que JPL - a fls. 299 -, quando, pela primeira vez, conta os abusos sexuais cometidos em Elvas, menciona expressamente que Carlos Pereira Cruz não teve qualquer relação consigo, ao contrário do que veio a dizer em audiência de julgamento; iii) Que LM - a fls. 569 -, quando descreve a sua primeira ida à suposta casa de Carlos Cruz, em Lisboa, afirma ter aceitado lá ir porque o via na televisão e queria conhecê-lo pessoalmente, enquanto, em audiência de julgamento, relata a sua surpresa ao vê-lo nessa casa da Av. das Forças Armadas; iv) Que LD - a fls. 648, 1637, 2374, 2973, 2982, 4005 - refere abusos de outros e não de Carlos Cruz, que, só meses depois da sua prisão, passou a incluir no lote dos abusadores.

Em suma, as declarações dos jovens em causa, prestadas no inquérito, conflituam, em aspectos substanciais, com aquilo que disseram no julgamento, quer quanto aos locais, quer quanto ao envolvimento de terceiros, quer quanto à cronologia dos factos, quer quanto ao circunstancialismo presente.

Não há que escamotear o evidente: neste processo não se pode fazer verdadeira justiça se o tribunal não puder valorar as declarações prestadas pelas vítimas durante o inquérito, de forma a avaliar cabalmente a sua credibilidade, tendo em conta a evolução do seu discurso e a natureza das suas contradições, sendo certo que é consensual, na doutrina científica, que a apreciação dessas divergências é elemento imprescindível para a formulação de um juízo adequado quanto àquela credibilidade.

O exercício da defesa não pode prescindir da leitura desses depoimentos e, eventualmente, do confronto dos jovens em causa com o teor das mesmas.

Essa leitura não se destina à prova de, por assim dizer, factos positivos, isto é, à prova de que aconteceu isto ou aquilo que tenha sido dito nessas declarações. A sua utilidade é permitir avaliar a credibilidade de quem imputa factos criminosos a arguidos de um processo, cuja prova fundamental assenta precisamente nos depoimentos dessas pessoas, sob pena de se ofender o núcleo essencial das garantias de defesa e o princípio de um processo equitativo, tal como a Constituição da República Portuguesa e Convenção Europeia dos Direitos do Homem salvaguardam.

O recurso interposto pela defesa de Carlos Cruz visa assegurar a possibilidade de utilizar, em benefício da descoberta da verdade material, tais declarações. Está pendente e a Relação de Lisboa deve começar por o apreciar.

Sendo deferida a valoração dessas declarações para aferir da credibilidade do que foi dito em julgamento, deverá a Relação de Lisboa, por uma questão de economia processual, verificar se essa leitura é suficiente - mesmo sem o confronto dos declarantes com o teor desses relatos -, sem necessidade de fazer baixar o processo à 1ª instância. A Relação é uma instância de julgamento de facto e não pode deixar de exercer os poderes em que, em nome do povo, administra a justiça.

Para uma adequada ponderação dos mecanismos conscientes ou inconscientes que levaram à construção de uma verdadeira fantasia colectiva, o recorrente - admitindo que a valoração desses depoimentos pode, desde já, ser feita pelo Tribunal da Relação - não deve deixar de, neste recurso, lançar mão desse material probatório, que a Relação tomará na devida conta se deferir esse segmento do recurso interposto, ou seja, se deferir a possibilidade de valorar o que, nesse âmbito, foi dito no inquérito. Se a Relação o indeferir, tal valoração não poderá ser feita e, nesse caso, os senhores Juízes Desembargadores deverão passar "por cima" dessas partes do recurso, que irão devidamente assinaladas.

Uma coisa é certa. Estamos perante a questão processual mais grave do julgamento. E a defesa de Carlos Cruz levará às últimas consequências - no quadro do que a lei autorizar e a moral permitir - a sua luta no sentido de garantir que o tribunal que o julga tenha na devida conta que, aqueles que o incriminam, disseram no inquérito o que não condiz, em aspectos essenciais, com o que vieram dizer em audiência de julgamento, o que resulta ou de uma mentira deliberada ou de um processo de inquinação da prova que só o acesso ao inquérito pode ajudar a explicar cabalmente.