Processual > O Meu Recurso para o Tribunal da Relação 2

II

  

 A SEMENTE DA FANTASIA


Era uma vez

            Era uma vez um boato nascido no ano de 1982, na Casa Pia de Lisboa, que envolveu Carlos Cruz num episódio de alegados abusos sexuais de menores, passado na residência do diplomata Jorge Ritto, em Cascais, que fotografias de cariz sexual comprovariam.

            Esse boato - "notícia ou versão geralmente maledicente, anónima e sem confirmação que se divulga acerca de alguém, de um facto ou de um acontecimento" (in dicionário da Academia das Ciências de Lisboa) - foi a causa remota do envolvimento de Carlos Cruz no processo da Casa Pia.

            O rumor esteve adormecido, como numa incubadora, durante 20 anos, mas em 2002 - pela mão de Teresa Costa Macedo, no contexto de um trabalho jornalístico divulgado pela estação televisiva "SIC" - foi activado e tornou-se no maior pesadelo da vida de Carlos Cruz.

 

 

Uma fuga de amor

 

            Fernanda Teresa Sousa Correia e Álvaro Jaime Pires Pimenta, ambos com 14 anos, eram namorados e certo dia, a 2 de Março de 1982, resolveram fugir da Casa Pia, onde viviam institucionalizados.

            Não tinham dinheiro nem local para onde ir. Por sugestão de Fernanda Correia, que ouvira o namorado falar do acesso que tinha à casa de um tal "tio Jorge", decidiram ir dormir à residência de Cascais do diplomata Jorge Ritto, que mantinha com Jaime Pimenta um relacionamento de natureza sexual.

            Jaime Pimenta "orientava-se" nos jardins de Belém, aí tendo conhecido Jorge Ritto, que, à época, se deslocaria num Alfa Romeo azul. O primeiro encontro terá ocorrido em Setembro de 1981 - tendo o jovem já 14 anos, uma vez que nascera a 20 de Junho de 1967 - e os contactos ter-se-ão mantido, segundo declarações do jovem, até 1986.

            Além de Jaime Pimenta, outros rapazes da Casa Pia "vendiam" igualmente favores sexuais naqueles jardins. Era, pelo menos, o caso de Orlando Manuel Lopes Pereira, de 15 anos, e de Paulo Lourenço Castelo Máximo, de 13 anos. Segundo alguns depoimentos registados, Orlando Pereira também se teria relacionado sexualmente com o diplomata, mas com Paulo Máximo não há qualquer notícia nesse sentido. Jorge Ritto guardaria, na sua residência, numa caixa de sapatos amarela, fotografias "Polaroid" de rapazes nus, algumas delas tiradas ao próprio Jaime Pimenta.

            Tais factos eram, nas suas linhas gerais, do conhecimento de um grupo de amigos casapianos, que sabiam dos "engates de homens" de Jaime Pimenta, de Orlando Pereira e de Paulo Máximo e do relacionamento de Jaime Pimenta e de Orlando Pereira com Jorge Ritto. Eram eles, José César Gonçalves, de 16 anos, José Carlos Ferreira dos Santos, de 13 anos, António Jorge Campos, de 16 anos, Fernando Manuel Jesus Gomes, de 17 anos, e Paulo Alexandre Fernandes, de 15 anos.

            Aquando da fuga de Fernanda Correia e Jaime Pimenta, o alarme foi dado ao final da tarde, na secção feminina do colégio Nuno Álvares da Casa Pia de Lisboa, onde Fernanda Correia residia. A responsável, Maria Isabel Evangelista Mendes, pôs-se logo em campo para encontrar a pupila e, após porfiadas diligências, com a ajuda de José Carlos Santos e de Orlando Pereira, conseguiu localizar e resgatar o casal de namorados, que nessa mesma noite regressou à Casa Pia.

            À luz do que consta do processo, estes dados são incontroversos.

 

As fontes documentais: i) enumeração

  

Num caso ocorrido há 20 anos, o bom senso manda que se privilegie a fonte documental, porque a memória, já de si traiçoeira, será então um instrumento particularmente vulnerável.

O que é que temos?

Em primeiro lugar, o relatório que a ocorrência mereceu, subscrito pelos dois únicos educadores que se deslocaram ao local onde as crianças foram encontradas, Maria Isabel Evangelista Mendes e Francisco Góis Faria, bem como por duas outras educadoras da secção feminina do colégio Nuno Álvares, Fernanda Maria Flora Gomes e Henriqueta Maria Paulo Pio.

Em segundo lugar, uma espécie de auto de interrogatório feito aos rapazes Jaime Pimenta, Orlando Pereira e José Carlos Santos pela directora do Colégio Nuno Álvares, Maria Jorge Couto Viana Lomba Canto Brandão, datado de 9 de Março de 1982, onde são recolhidas declarações que, perante a directora e dois educadores, terão sido prestadas por aqueles jovens. Por facilidade, chamar-lhe-emos o "relatório da directora".

Em terceiro lugar, aquilo que chegou aos nossos dias do processo judicial que o acontecimento mereceu, o qual veio a ser arquivado a 11 de Fevereiro de 1987, pela magistrada do Ministério Público, Maria do Carmo Peralta, ficando a aguardar melhor prova.

Tal processo terá sido destruído, ao abrigo de legislação que, de uma forma mais ou menos indiscriminada, permitia a destruição de processos findos. Porém, felizmente, algumas peças subsistiram, ou no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros - para onde terão sido remetidas no âmbito das diligências conducentes à localização e inquirição do embaixador Jorge Ritto - ou no processo administrativo do Ministério Público. Umas e outras foram incorporadas nos autos do processo Casa Pia, dando origem ao seu "apenso T".

 

 

As fontes documentais: ii) o relatório dos educadores

 

            Os educadores, directamente envolvidos na localização e recepção da Fernanda Correia e de Jaime Pimenta, já referidos, elaboraram um relatório dessas diligências, que retrata com objectividade o que aconteceu.

            Oiçamo-los:

(...) Aguardou-se a hora da chegada da aluna. Não tendo esta comparecido, foi procurada pelos jardins e em casa de colegas da escola. Contactando com algumas colegas dela, chegou-se à conclusão de que ela teria fugido com o Jaime Pimenta.

Pelas 19 horas, foi confirmado na secção dos rapazes, que o Jaime não estava na secção, e não tinha comparecido em Maria Pia, o que aliás é frequente, pois este aluno passa os dias na escola da aluna Fernanda Teresa (Escola Preparatória Francisco Arruda).

Tentou-se então junto de alguns alunos, recolher informações que nos fornecessem pistas sobre o paradeiro dos referidos alunos. Foi contactado o aluno José Carlos, tendo este dito que estes tinham planeado fugir para Monte Gordo. O grupo que iria para Monte Gordo era constituído pelos alunos Jaime Pimenta, Orlando, Fernanda Teresa e Paula Branco. Por falta de dinheiro acabaram por desistir. Disse ainda que o tio do Jaime tinha dado a este último 4.000$00 para roupa e tabaco e que eles deveriam estar em casa desse tio, mas que quem estava mais dentro do assunto era o Orlando.

Falando então com o Orlando, depois de alguns esforços, este acabou por nos dizer que a pessoa nomeada pelo Jaime como tio, era senão um tal Dr. Jorge que o Jaime conhecera no jardim de Belém há já algum tempo. Este, dava-lhe dinheiro e tabaco e levava-o para sua casa a passar os fins de semana. Tentámos então saber a morada do dito Dr. Jorge, dizendo-nos o Orlando que sabia lá ir por já lá ter estado, mas que não sabia a direcção.

Com todos estes dados, chegámos à conclusão que seria muito possível que os alunos fugidos lá se encontrassem. Pedimos ao Orlando que nos acompanhasse até à referida casa que fica em Cascais. Dirigimo-nos primeiro à polícia de Cascais para que uma autoridade nos acompanhasse.

Chegados à dita casa, tocámos várias campainhas em virtude do porteiro não nos atender. Contactámos assim com os vizinhos do Dr. Jorge, pelos quais soubemos que o dito senhor pertencia ao Corpo Diplomático. Insistimos em tocar na campainha da casa mas parecia lá não estar ninguém. Contudo, não desistimos de falar com o porteiro, afim do que tivemos que tocar a campainha sem interrupção. Finalmente abriu e disse-nos que realmente se encontravam lá em casa dois sobrinhos do Dr. Jorge. Ele próprio lhes tinha aberto a porta, porque estes traziam um bilhete com autorização. Os educadores que nesse momento lá se encontravam (Maria Isabel e Faria) pediram-lhe com muita insistência que lhes abrissem a porta visto que os alunos não o tinham feito.

Foi assim que os encontrámos deitados no mesmo sofá-cama. Se não dormiam, disfarçavam bem.

Verificou-se depois, que o bilhete de autorização tinha sido por eles falsificado, pois o dito Dr. Jorge encontra-se em Angola, em serviço, segundo informação do porteiro.

Os alunos acompanhados pelos respectivos educadores, regressaram à secção.

Não há qualquer menção a Carlos Cruz.

  

As fontes documentais: iii) o relatório da directora


            A 9 de Março de 1982, os rapazes envolvidos - Jaime Pimenta, José Carlos Santos e Orlando Pereira - prestaram declarações sobre os acontecimentos da fuga de Jaime Pimenta e Fernanda Correia, que foram recolhidos pela directora do colégio Nuno Álvares, Maria Jorge Brandão, na presença de dois educadores, sem que tivesse ficado discriminado o que é que cada um disse. Porém, depreende-se que o principal declarante terá sido Jaime Pimenta.

            De importante para o que aqui nos traz, foi então registado o seguinte:

  • Que Jaime Pimenta conhece o Dr. Jorge Ritto desde Setembro, tendo o encontro ocorrido no Jardim de Belém, quando o senhor apareceu de carro;
  • Ter-se-ão seguido vários encontros entre ambos, esclarecendo "o aluno" (presume-se, Jaime Pimenta) que recebeu várias vezes dinheiro (não está expresso, mas é implícito que o pagamento teria uma contrapartida de cariz sexual);
  • O "senhor" (presume-se, Jorge Ritto) tem vários carros e, no prédio onde reside, no mesmo piso, residiriam um alemão e um americano, "a quem já apanhou a dormir juntos";
  • O "aluno" teria livre acesso à casa através do porteiro, sendo conhecido por "sobrinho";
  • Jaime Pimenta e Orlando Pereira terão roubado tabaco e outros objectos na casa do "senhor", o que terá levado este a avisar o porteiro para só abrir a porta com uma "licença escrita";
  • O "senhor" possui uma caixa de sapatos amarela cheia de "fotografias artísticas" tiradas com a máquina instantânea, onde o declarante se terá reconhecido a ele próprio (presume-se, Jaime Pimenta) e ainda o "Sousa grande", o "Quinhentas", o "Tó Jaime" e o "rapaz do Teatro S. Luiz", as quais terão sido vistas pelo Orlando;
  • Dos vizinhos, havia ainda um conhecido chamado Alfredo, com 5 filhos.

 

Finalmente, o auto termina com a seguinte frase, que está na origem do rumor que envolveu Carlos Cruz neste episódio: "quando os educadores lá estiveram na noite de 8 de Março foi-lhes dito que o locutor Carlos Cruz frequentava a casa". Não se sabe quem disse nem a quem disse. E a referência à noite de 8 de Março deve ser um lapso, porque o desaparecimento dos menores e a única deslocação dos educadores à casa do diplomata terá ocorrido a 2 de Março.

 

 

As fontes documentais: iv) o processo judicial

  

            Os factos apurados nos dois relatórios foram participados pelo provedor, João Baptista Comprido, à Secretária de Estado da Família, Teresa Costa Macedo, por ofício de 19 de Março de 1982, explicando-se que a razão do envio se relacionava com "implicações que a ocorrência possa ter no exterior da Casa Pia a nível de representações estrangeiras".

            O ofício em causa, com os dois relatórios, foi apresentado na Directoria de Lisboa da Polícia Judiciária, a 12 de Agosto de 1982, onde, a 13 de Agosto, foi averbado à 4ª Secção, de que então era responsável a inspectora Maria Leontina Trigo Fernandes, a quem cabia, nesse tempo, a investigação dos crimes sexuais.

            Na Polícia Judiciária, foram ouvidos vários dos jovens já referidos, mas, não Fernanda Correia, nem Jaime Pimenta, nem Orlando Pereira, que entretanto teriam deixado a Casa Pia, estando Fernanda Correia e Jaime Pimenta a viver no estrangeiro e Orlando Pereira supostamente com o pai, na Amadora.

            Dessas inquirições, efectuadas em Novembro e Dezembro de 1982, resulta o seguinte:

  • Paulo Lourenço Máximo: começou a "engatar" em Belém, com o Orlando; o Jaime também fazia muitos "engates", mas queria andar sempre sozinho; o Jaime tinha um homem que lhe dava muito dinheiro, o Rito, que vivia em Cascais, em casa onde o Paulo nunca esteve, mas para onde sabe que o Jaime ia "passar dias". Não fala no Carlos Cruz.
  • José César Gonçalves: correm rumores de que o Jaime, o Orlando e o Paulo andam com homens que lhes pagam; o declarante não os acompanha; o Jaime e o Orlando tinham um homem, o dr. Rito, que lhes dava muito dinheiro; o Jaime tinha a chave da casa dele. Não fala no Carlos Cruz.
  • José Carlos Ferreira dos Santos: o Jaime, o Orlando e o Paulo "engatavam" homens em Belém; algumas vezes foi com eles, mas ficou à espera, nunca "engatou"; o Jaime e o Orlando tinham um homem, Jorge Rito, que vivia em Cascais e que dava "muito dinheiro aos rapazes e roupas"; nunca o viu; porém, soubera, pelo que ouvira dizer ao Jaime, que os amigos do Rito "eram estrangeiros e um português que trabalhava na televisão, chamado Carlos Cruz; o Jaime Pimenta, em casa do Ritto, teve um problema com o Carlos Cruz, a quem roubou dinheiro".
  • António Jorge Campos: o Jaime, o Orlando e o Paulo "engatavam" homens nos jardins de Belém; o Jaime e o Orlando andavam com um homem, Jorge Rito, que lhes dava muito dinheiro e roupa e os levava para casa deles. Não conhece tal indivíduo. Não fala no Carlos Cruz.
  • Fernando Manuel Jesus Gomes: o Jaime, o Orlando e o Paulo "engatavam paneleiros", cujos nomes e moradas desconhece; esses rapazes apareciam com dinheiro e "bem vestidos"; ele não engatava; não refere os nomes de quaisquer clientes. Não fala no Carlos Cruz.
  • Paula Alexandra Fernandes: declarações idênticas ao anterior; ouviu falar no "dr. Rito", mas não o conheceu; nunca "engatou". Não fala no Carlos Cruz.

 

Concluídas as inquirições, a Polícia Judiciária, após algumas diligências infrutíferas quanto à localização de outras pessoas que importaria ouvir, elaborou o relatório respectivo, a 19 de Julho de 1983, que se entendeu que devia ser remetido à comarca de Cascais, por se afigurar ser o territorialmente competente para apreciar a existência de eventual crime de atentado ao pudor ocorrido em Cascais, na morada do diplomata Jorge Ritto.

A inspectora Leontina Trigo Fernandes determinou a remessa dos autos à comarca de Cascais.

Pelo facto de o processo ter sido destruído, não se sabe que diligências é que, em concreto, tiveram lugar, mas do processo administrativo decorre que as mesmas terão ocorrido entre 1983 e 1987, parte das quais na tentativa de localizar e inquirir testemunhas relevantes, designadamente Jaime Pimenta e Orlando Pereira, as quais não foram bem sucedidas. O processo revela igualmente que houve múltiplo expediente com o objectivo de assegurar a inquirição do embaixador Jorge Ritto, a qual acabou por ser efectuada, o que se retira do despacho final proferido. Terá sido ainda nesse âmbito que Carlos Cruz foi ouvido, apenas como testemunha, negando qualquer envolvimento ou sequer conhecimento dos factos, nos termos do que por ele foi narrado em audiência de julgamento e já tinha afirmado perante a comunicação social, quando a história veio a público depois de ter eclodido o escândalo da Casa Pia.

A 11 de Fevereiro de 1987, a procuradora Maria do Carmo Peralta lavrou despacho de arquivamento, ficando os autos a aguardar melhor prova, por entender que a prova recolhida não permitia deduzir uma acusação minimamente consistente. Sublinhou, nesse despacho, que Jorge Ritto terá negado os factos que lhe eram imputados e que Jaime Pimenta e Orlando Pereira não foram ouvidos "por manifesta impossibilidade".

Nem no relatório da Polícia Judiciária, nem no despacho final da procuradora Maria do Carmo Peralta há qualquer referência a Carlos Cruz ou a fotografias, de qualquer espécie.

 

 

As fontes documentais: v) síntese

  

            Do exposto se retira que os elementos documentais existentes apenas permitem concluir que, à época, alguém terá dito que Carlos Cruz frequentava a casa de Jorge Ritto, sem que concretamente se saiba quem o disse e a quem o disse.

            Mas pode razoavelmente depreender-se dos elementos expostos que a fonte da informação terá sido José Carlos Santos, que terá ouvido dizer a Jaime Pimenta que, numa das suas deslocações a casa do diplomata Jorge Ritto, teria roubado Carlos Cruz. É a história da "banhada" de que falaremos mais adiante.

            Por outro lado, é seguro que houve referências a fotografias que existiram numa caixa de sapatos amarela em casa do diplomata Jorge Ritto, as quais aparentemente teriam um cariz sexual, nelas sendo retratados rapazes, designadamente Jaime Pimenta. Não há qualquer menção a fotografias de Carlos Cruz.

Mas há um dado que podemos desde já antecipar, com base nos elementos apurados depois de 2002. Fernanda Correia, quando fugiu com Jaime Pimenta para casa do embaixador Jorge Ritto, terá tido acesso à caixa de sapatos com fotografias, acesso muito rápido e fugaz, mas onde, para além do namorado e de Orlando Pereira, terá acreditado ver o apresentador Carlos Cruz. Tal facto, que a aluna terá relatado pelo menos a uma colega, também pode ter contribuído para a divulgação de um rumor.

Este dado não é uma invenção da Fernanda Correia. Mas uma convicção genuína, embora errónea, que a mesma então teve, a qual, infelizmente, iria ter as mais perniciosas consequências na vida de Carlos Cruz, não tanto por causa dessa impressão de Fernanda Correia, mas devido à capacidade de sugestão que essa circunstância, quando conhecida, veio a implicar na gestação e difusão daquilo que era um puro boato.

 

Os jovens (após 2002): i) enumeração

  

            Quando deflagrou o escândalo da Casa Pia e logo se tornou público o teor dos relatórios de 1982, houve três jovens que se tornaram o foco de todas as atenções: Jaime Pimenta, o amigo de Jorge Ritto em casa de quem o casal de jovens se acolhera, Fernanda Correia, a namorada que com aquele fugira, e José Carlos Santos, que - entre todos os ouvidos nas declarações registadas - era o único que fazia uma menção a Carlos Cruz, dizendo que tinha ouvido Jaime Pimenta contar que teria roubado Carlos Cruz em casa de Jorge Ritto.

            Estes jovens foram perseguidos por toda a espécie de jornalistas, desde os escrupulosos aos mais sensacionalistas.

Feito o balanço, até surpreende que estes jovens tenham dado um contributo decisivo para a compreensão da génese e desenvolvimento do boato que está na origem da ligação de Carlos Cruz a este processo.

 

Os jovens (após 2002): ii) Jaime Pimenta

  

            Jaime Pimenta foi ouvido no inquérito, a 28 de Fevereiro de 2003. Não foi ouvido no julgamento, apesar de ter sido arrolado pela defesa de Carlos Cruz. Não foi possível localizá-lo, sabendo-se apenas que o seu último paradeiro conhecido terá sido em França. Mas o seu depoimento no inquérito foi lido na audiência de julgamento.

            As declarações de Jaime Pimenta são perfeitamente esclarecedoras e até revelam aprumo. Assume a relação com Jorge Ritto e a existência de fotografias na casa deste, de que ele também seria objecto. Não faz qualquer referência a Carlos Cruz, não sendo difícil de adivinhar as insistências que nessa matéria podem ter sido feitas pelas duas procuradoras que integravam a equipa do Ministério Público, procuradoras Paula Soares e Cristina Faleiro, numa das raras inquirições a que presidiram durante o inquérito.

Oiçamo-lo:

Enquanto esteve na CPL "orientava-se" nos Jardins de Belém, aí tendo conhecido o Jorge Ritto, que na altura tinha um Alfa Romeo azul. No primeiro encontro o mesmo deu-lhe logo 500$00 e comprou-lhe roupa nova. Passou a ser o "puto" dele, indo a sua casa com frequência. Os encontros na casa do Jorge Ritto eram apenas entre o depoente e aquele, nunca tendo participado em quaisquer bacanais.

Manteve contacto com o Jorge Ritto até muito tempo depois de ter saído da CPL, tendo estado com ele pela última vez já no ano de 1986.

O único amigo do Jorge Ritto que conheceu foi um indivíduo que segundo pensa seria advogado, tendo passado uma semana com tal amigo, cujo nome não recorda, no Algarve, na companhia do Jorge Ritto que, na altura, acompanhava com um amigo do depoente de que não recorda o nome.

Quando estava na CPL os seus amigos eram o Orlando e o José Carlos, mas este segundo não alinhava nos esquemas com os homens. A sua namorada era a Fernanda.

Sabia, porque viu, que o Jorge Ritto tinha muitas fotografias de rapazes nus, tiradas com um "Polaroid", tendo-o também fotografado a si (...).

 

Não há qualquer menção a Carlos Cruz

 

Os jovens (após 2002): iii) José Carlos Santos

  

            Perante a afirmação peremptória de Jaime Pimenta, importava esclarecer com José Carlos Santos o contexto em que ele teria ouvido a referência ao roubo de Carlos Cruz em casa de Jorge Ritto, que o teria levado a concluir que Carlos Cruz frequentaria a casa de Jorge Ritto, o que terá sido determinante para a inclusão da frase "assassina" incluída no relatório de 1982, que disso se faz eco.

            José Carlos Santos foi alvo de uma impiedosa perseguição jornalística, desde que, poucos dias após o eclodir do alvoroço do processo Casa Pia, o jornal "24 Horas" anunciava declarações suas do seguinte teor: "Errei. Não tive noção do que estava a dizer e se o prejudiquei foi sem querer. Foi uma garotice e a verdade é que nunca o vi. Falei por ouvir falar (...)". O jornal assumia ainda um seu pedido de desculpas a Carlos Cruz, a casa de quem, de resto, se deslocou. Outros jornalistas tentaram obter de José Carlos Santos um desmentido e, sobretudo, a reposição de uma outra versão que incriminasse Carlos Cruz.

            A questão formal do "pedido de desculpas" é irrelevante, pois aquilo que interessa é conhecer a natureza da informação que José Carlos deu aos educadores em 1982, bem como a existência de outros elementos posteriores que a pudessem confirmar ou infirmar.

            O seu depoimento em audiência de julgamento, prestado a 27 de Março de 2006, é particularmente elucidativo.

            Respondendo às perguntas do procurador, José Carlos Santos assumiu a sua proximidade com Jaime Pimenta e com Orlando Pereira:

Procurador - (...) Ora bem, enquanto esteve na Casa Pia de Lisboa o Senhor dava-se com alguém em especial? Havia algum amigo, amiga ou algum conjunto de pessoas, algum grupo com quem o Senhor se desse em especial?

José Carlos Ferreira dos Santos - Não, havia uns que saía mais do que com outros ... do que outros, mas não ...

Procurador - Desses com quem saía mais pode referir alguém?

José Carlos Ferreira dos Santos - Jaime, Orlando.

 

E o conhecimento que tinha dos "engates" que eles faziam nos jardins de Belém:

 

Procurador - Mas o Senhor assistia por exemplo a contactos, a abordagens?

José Carlos Ferreira dos Santos - Não. Nem sempre. Era os carros, mais ou menos. Quando eles entravam nos carros.

Procurador - Via-os a entrar para os carros?

José Carlos Ferreira dos Santos - Sim.

Procurador - Não é lá o que acontecia ou deixava de acontecer ... isso ... pronto. Mas isso o Senhor via?

José Carlos Ferreira dos Santos - Via a entrar para os carros. Sim. Vi.

Procurador - E onde é que isso se passava?

José Carlos Ferreira dos Santos - No Jardim de Belém. (...)

Procurador - Era nos jardins de Belém que isso ... que isso se passava. E isso acontecia com este Orlando e com o Jaime?

José Carlos Ferreira dos Santos - Sim

 

            José Carlos Santos narrou a sua intervenção nos acontecimentos ocorridos na sequência da fuga de Jaime Pimenta e de Fernanda Correia em termos de perfeita conformidade com o que consta do relatório dos educadores.

            E foi nesse contexto que José Carlos Santos explicou o que é que acontecera para ter contado que Jaime Pimenta lhe dissera que tinha dado uma "banhada" a Carlos Cruz:

Advogado - Sr. Ferreira dos Santos, eu represento o Sr. Carlos Cruz, o Senhor já contou que, em 1982, houve essa ida do Jaime e da Teresa lá para Cascais, depois a polícia, ou os educadores, falaram consigo e com o Orlando; foi o Orlando que foi a Cascais, encontraram-nos, tinham ido a casa de um tio, depois falou com eles e, enfim, eles contaram que tinham fugido e que tinham ido para casa desse tal tio; e também contou que sabia que o Orlando e que o Jaime às vezes se orientavam ali nos jardins de Belém, é assim não é?

José Carlos Ferreira dos Santos - Sim senhor.

Advogado - Ora bem, é neste contexto que eu lhe quero colocar uma questão, que já foi assim, que já teve aí algumas referências que eventualmente tenham a ver com isto ou não o Senhor dirá. O Senhor referiu aí há pouco a história de uma banhada, explique lá o que é que quis dizer com essa história da banhada e se essa história da banhada tem a ver com alguma das pessoas que está sentada atrás de si.

José Carlos Ferreira dos Santos - É assim a história da banhada tem a ver com o Sr. Carlos Cruz ...

Advogado - Então conte lá sem, à vontade, diga a verdade, diga tudo o que se lembra, o que não se lembra não se lembra, o que se lembra diga.

José Carlos Ferreira dos Santos - É assim, a gente quando fomos abordados lá pelos educadores e pelo suposto, teve que se ir à Polícia Judiciária, eles perguntaram ah, no dia anterior já tinha visto, já tinha dito o meu colega que olhou, tinha dito que viu um coiso na televisão e disse "olha aquele foi o, o que eu lhe dei a banhada ontem".

Advogado - Quem é que disse isso?

José Carlos Ferreira dos Santos - O Jaime

Advogado - O Jaime, como é que foi, os Senhores estavam a ver televisão?

José Carlos Ferreira dos Santos - Sim, sim

Advogado - Quem é que estava a ver televisão?

José Carlos Ferreira dos Santos - Eu e os meus colegas.

Advogado - Estavam os seus colegas, lá na Casa Pia.

José Carlos Ferreira dos Santos - Sim.

Advogado - E apareceu na televisão o Sr. Carlos Cruz, foi?

José Carlos Ferreira dos Santos - Sim, apareceu, alguém identificou, depois um educador, sabia lá que era o Sr. Carlos Cruz...

Advogado - E então o Senhor ouviu o Sr. Jaime dizer o quê?

José Carlos Ferreira dos Santos - Aquele foi o que eu lhe dei a banhada ontem.

Advogado - E aquele quem era?

 

José Carlos Ferreira dos Santos - A gente na altura não sabia quem era, houve um adulto qualquer que estava ali ao lado e que disse que era o Carlos Cruz.

Advogado - Que era o Carlos Cruz, pronto. E isso foi antes de eles terem fugido.

José Carlos Ferreira dos Santos - Antes de ... pois ...

Advogado - Pormenores de como é que foi a banhada ele deu ou disse só "eu dei uma banhada àquele"?

José Carlos Ferreira dos Santos - É assim ele deu pormenores, disse que tinha lhe tirado o dinheiro e que depois tinha passado e disse afinal não levaste todo.

Advogado - E isso tinha sido ali ao pé dos Jardins de Belém?

José Carlos Ferreira dos Santos - Não ele só falou da banhada não sei onde foi. Não sei onde foi.

Advogado - Isso foi antes da fuga.

José Carlos Ferreira dos Santos - Derivado à fuga é que eu falei, é que eu falei nisso porque eles começaram, como é que eu hei-de dizer, eles queriam saber tudo o que a gente sabia.

 

            Isto é, José Carlos Santos relatou que a sua informação - acerca do roubo que Jaime Pimenta fizera a Carlos Cruz - se baseara no facto de, antes da fuga do colega e da namorada, ter ouvido Jaime Pimenta dizer - quando viam a televisão e nela aparecia a figura de Carlos Cruz (identificado por terceiro) - que dera uma "banhada" a Carlos Cruz, tendo-lhe tirado dinheiro.

É certo que o relato da "banhada", recordada a 20 anos de distância, contém imprecisões que o decurso do tempo ajuda a compreender. De resto, o mesmo preciso episódio ficou na memória de Fernanda Correia, como se verá adiante.

Esclareceu ainda que só falou nisso por causa da fuga, porque "eles (os educadores e a polícia, presume-se) queriam saber tudo o que a gente sabia".

            Disse também - aliás, tal como Fernanda Correia - que essa fora a única vez em que tinha ouvido uma menção a Carlos Cruz:

Advogado - O Senhor nas suas conversas com o Sr. Jaime Pinto e com a D. Teresa e com esse grupo, além desta referência à tal banhada do Sr. Carlos Cruz, ouviu mais alguma referência ao Sr. Carlos Cruz?

 José Carlos Ferreira dos Santos - Não.

Advogado - Ouviu nalgum colega mais alguma referência a que o Sr. Carlos Cruz fosse cliente de alguma dessas pessoas, nunca ouviu nenhuma referência?

José Carlos Ferreira dos Santos - Não. (...)

Advogado - Portanto a única coisa que o Senhor sabia sobre o Sr. Carlos Cruz era a conversa da banhada?

José Carlos Ferreira dos Santos - Mais nada.

 

E mais acrescentou que era sua convicção que essa referência fora uma gabarolice, sendo certo que, já depois de 2002, quando encontrara Jaime Pimenta, num encontro que lhes fora proposto por uma jornalista, o colega fora perfeitamente claro a dizer-lhe que essa história da "banhada" era mentira, não passava de uma "treta":

 

Advogado - E portanto essa referência que o Senhor, que o Senhor, que o Jaime Pimenta fez ao Sr. Carlos Cruz, o Senhor admite que possa ter sido uma gabarolice?

José Carlos Ferreira dos Santos - É assim agora sim.

Advogado - Agora sim.

José Carlos Ferreira dos Santos - Agora sim.

Advogado - Na altura não, na altura não sabia.

José Carlos Ferreira dos Santos - Não porque depois a gente deixou de falar nisso e nunca mais passamos cartão a isso.

Advogado - E agora sim, porquê?

José Carlos Ferreira dos Santos - Porque, não sei se foi há 1 (um) ano ou há 2 (dois) anos quando vi o Jaime e ele disse-me que afinal era mentira. (...)

Advogado - Em que contexto é que foi essa conversa que teve com o Sr. Jaime?

José Carlos Ferreira dos Santos - Foi, ele veio ter comigo...

Advogado - Hum.

José Carlos Ferreira dos Santos - ... com uma Jornalista também e tivemos os dois a falar e eu ...  perguntei-lhe da confirmação pelo, no qual eu estou metido também é só por causa disso, e perguntei-lhe a ele, pronto se aquilo era mesmo verdade e ele disse que era treta.

 

Em suma, ficou esclarecido em tribunal, pelas declarações directas dos intervenientes, Jaime Pimenta (no inquérito, mas lidas em audiência de julgamento) e José Carlos Santos (em audiência de julgamento), a razão de ser da circunstância de José Carlos Santos, por equívoco assente numa "mentirola" do colega, ter referido que Carlos Cruz frequentava a casa de Jorge Ritto, onde por ele teria sido roubado.

Sublinhe-se que mais nenhuma outra razão concreta - para além das declarações de José Carlos Santos, agora esclarecidas - foi apurada para que o nome de Carlos Cruz tivesse sido incluído no relatório de 9 de Março de 1982 (relatório da directora).

 

Os jovens (após 2002): iv) Fernanda Correia

  

            Falta referir Fernanda Teresa Correia, a namorada que fugira com Jaime Pimenta e que, logo após o eclodir do processo Casa Pia, "chocara" o país com a revelação de que, numa caixa de sapatos amarela, em casa de Jorge Ritto, vira fotografias de cariz sexual, onde - era sua firme convicção - Carlos Cruz aparecia retratado.

Fernanda Correia deu entrevistas a vários órgãos de comunicação social (jornais e televisão), onde relatou o episódio da fuga e disse, por diversas vezes, que vira Carlos Cruz nas fotografias. Relatou ainda que, perante a reacção do próprio e da família, chegou a duvidar de si própria, mas acabou sempre por reafirmar que vira duas fotografias de Carlos Cruz em casa do diplomata.

Este relato, bastante genuíno, teve uma enorme influência nos acontecimentos que se seguiram, até porque se cruzava com as declarações (estas infundadas, como se vai ver) de Teresa Costa Macedo, que iam no mesmo sentido.

Reafirme-se que a posição da defesa de Carlos Cruz sempre foi a de ter acreditado na sinceridade do depoimento da rapariga, a qual foi induzida em erro por uma qualquer semelhança - não raro, como é sabido - e por um contexto no qual relevava a sugestão propiciada pela referência à "banhada a Carlos Cruz", feita pelo namorado na presença de vários amigos, quando viam televisão, entre os quais, a própria Fernanda Correia.

Ouvida em audiência de julgamento a 15 de Março de 2006, Fernanda Teresa Correia produziu a mais extraordinária inquirição a que alguma vez o autor deste texto assistiu. Ainda hoje, apenas ouvindo a gravação, não pode deixar de se sentir um calafrio.

A jovem entrou assustadíssima na sala de audiências, chegando a gritar e a dirigir invectivas e insultos aos arguidos presentes. Teve de ser acalmada, com muita paciência e "jeito", e só aceitou depor sentada numa cadeira especialmente colocada a larga distância de tais arguidos, já muito próximo da bancada dos juízes.

Interrogada pelo procurador, relatou os termos da fuga em conformidade com o que consta dos relatórios de 1982:

 

Procurador - Pronto, e chegou mesmo a fugir do Colégio?

Fernanda Teresa - Chegámos.

Procurador - Chegámos, quem?

Fernanda Teresa - Eu e o Jaime.

Procurador - A Senhora e o Jaime. De quem é que foi a iniciativa? Quem é que teve a ideia?

Fernanda Teresa - Naquela altura éramos para ser quatro. Era a Ana Paula, a Ana Paula Branco e o Orlando.

Procurador - Hum, hum.

Fernanda Teresa - Depois houve uma ... não me recordo bem dessa parte mas eles não quiseram ir, normalmente éramos para ir para o Algarve naquela altura. E, e ao fugirmos, pronto éramos, demos conta que éramos só nós os dois e eu tive a ideia de lhe dizer, porque ele falava muitas vezes dum tio e tive a ideia de lhe ...

Procurador - Está-se a referir ao Jaime, não é?

Fernanda Teresa - Exacto.

Procurador - O Jaime falava muitas vezes dum tio. Dizia onde é que esse tio vivia?

Fernanda Teresa - Sim, sim. Dizia

Procurador - Onde é que ele dizia que o tio vivia?

Fernanda Teresa - Em Cascais.

Procurador - Em Cascais. Mas alguma vez referiu o nome do tio?

Fernanda Teresa - Sim.

Procurador - Como é que ele então, que nome é que ele referia?

Fernanda Teresa - Chamava-se Jorge.

Procurador - Tio Jorge?

Fernanda Teresa - Sim.

 

Explicou porque, a pedido do namorado, falsificou a assinatura do "tio":

 

Procurador - O que é que se passou então, quando lá chegaram?        

Fernanda Teresa - O Jaime pediu-me para falsificar a assinatura, visto que ... que ele não poderia fazer.

Procurador - Mas a assinatura ...

Fernanda Teresa - Amostrou-me a assinatura num papel ao lado e eu imitei-a.

Procurador - Mas assinatura de quem?

Fernanda Teresa - Do Jorge Ritto.

 

E a abordagem ao porteiro feita pelo Jaime Pimenta:

 

Procurador - A Senhora assistiu, a Senhora diz, lembro-me dele ter ido falar com o Porteiro. A Senhora assistiu a essa conversa?

Fernanda Teresa - Não ... não me recordo. Lembro-me unicamente de... as partes que mais me marcaram, quer dizer, não me recordo tudo mesmo naqueles detalhes, não é?

 

Conta como tinham fome e como decidiram ficar lá a passar a noite, tendo ela confiado que ele acabaria por arranjar dinheiro, como sempre:

 

Fernanda Teresa - Tínhamos fome.

Procurador - Ah, tinham fome. E o que é que fizeram depois de terem entrado? Se tinham fome ...

Fernanda Teresa - Começamos à procura de comida.

Procurador - Como?

Fernanda Teresa - Começámos a abrir os armários à procura de comida.

Procurador - E encontraram comida?

Fernanda Teresa - Um pacote de bolachas, batatas fritas, era tudo... (...)

Procurador - Então, nessa altura o que é que decidiram? Decidiram que iam ficar...

Fernanda Teresa - Lá a noite.

Procurador - Como?

Fernanda Teresa - Ficar lá à noite.

Procurador - Ficar lá essa noite?

Fernanda Teresa - Hum, hum.

Procurador - Pronto. E qual era o plano depois? Ficar lá essa noite e depois?

Fernanda Teresa - Ele queria arranjar algum dinheiro

Procurador - E como é que pensava em arranjar dinheiro?

Fernanda Teresa - Não sei.

Procurador - Não sabe.

Fernanda Teresa - Ele arranjava-o sempre.

 

Em seguida, explicou que - de maneira fugaz e aproveitando uma breve saída do namorado - tinha visto, numa caixa de sapatos, as fotografias em pauta:

 

Procurador - Abriu essa caixa de sapatos?

Fernanda Teresa - Abri.

Procurador - O que é que essa caixa de sapatos continha?

Fernanda Teresa - Fotografias.

Procurador - Fotografias. Mexeu nas fotografias?

Fernanda Teresa - Mexi.

Procurador - Sr.ª D. Fernanda, eram muitas fotografias? Eram poucas fotografias?

Fernanda Teresa - Enchiam a caixinha de sapatos.

Procurador - Eram fotografias a cores? Eram fotografias a preto e branco?

Fernanda Teresa - Polaroid.

Procurador - Porque é que diz isso?

Fernanda Teresa - Tenho ... (imperceptível) ... desculpe. Tinha uma faixa mais grossa, está a perceber?

Procurador - Uma faixa ...

Fernanda Teresa - Uma faixa branca ...

Procurador - ... de que cor? Sim?

Fernanda Teresa - Branca. E eram a cores.

Procurador - Polaroid, quando diz Polaroid é daquelas máquinas que tiram ...

Fernanda Teresa - Que saem ... sim.

Procurador - Instantânea.

Fernanda Teresa - Fotografias instantâneas.

Procurador - Eram todas assim?

Fernanda Teresa - Eram.

Procurador - Nessas fotografias a Senhora tirou-as todas? Viu-as todas? Viu só parte?

Fernanda Teresa - Não. Foi tudo muito rápido.

Procurador - Como?

Fernanda Teresa - Muito, muito rápido. Foi tudo rápido. Tinha medo que o Jaime chegasse.

 

E que nelas reconheceu Carlos Cruz, o namorado e um colega:

 

Procurador - Sr.ª D. Fernanda? Nessas fotografias que viu, apesar de rápido como refere viu alguém que conhecesse?

Fernanda Teresa - Sim.

Procurador - Pode dizer ao Tribunal quem era a pessoa ou quem eram as pessoas que reconheceu nas fotografias?

Fernanda Teresa - Houve ... houveram duas que me chamaram particularmente a atenção.

Procurador - Porquê?

Fernanda Teresa - Porque as ... julguei que era o Carlos Cruz.

Procurador - Como?

Fernanda Teresa - Julguei que fosse o Sr. Carlos Cruz.

Procurador - Julgou?

Fernanda Teresa - Para mim, era naquela altura. (...)

Procurador - [O Jaime e o Orlando] Estavam nessas fotografias?

Fernanda Teresa - Estavam.

Procurador - Nessas fotografias eles apareciam vestidos? Apareciam despidos? Como é que apareciam?

Fernanda Teresa - Despidos.

 

Refere que, numa das fotografias, Carlos Cruz estaria numa posição sexual, mas na outra já não recorda:

 

Juiz Presidente - Sr.ª D. Fernanda Teresa dizer ao Sr. Procurador, a Senhora diz que viu determinadas fotografias, duas que identifica ter visto o Sr. Carlos Pereira Cruz. Dizer como o Sr. Procurador está a perguntar, o que é que viu nessas fotografias?

Fernanda Teresa - Tinham o sexo ...

Juiz Presidente - A Senhora já é uma pessoa adulta e portanto sabe descrever

Fernanda Teresa - Claro.

Juiz Presidente - ... se viu, sabe descrever o que viu nas fotografias.

Fernanda Teresa - O sexo em erecção.

Procurador - Quem é que tinha o sexo em erecção?

Fernanda Teresa - O Sr. Carlos Cruz.

Procurador - No sexo. Era nas duas fotografias assim?

Fernanda Teresa - Não. Havia uma que era diferente

Procurador - Como é que era essa?

Fernanda Teresa - Acho que estava meio despido, não sei.

Procurador - Quem? Nessa segunda fotografia. A primeira já a relatou, já contou ... Sr.ª D. Fernanda, não hesite. Mais uma vez quaisquer dúvidas que tenha, quaisquer ...

Fernanda Teresa - Estou baralhada.

Juiz Presidente - Tem que falar alto.

Fernanda Teresa - Estou baralhada. (...)

Juiz Presidente - Então, está baralhada. Disse agora, estou baralhada, isto são os nervos. Está baralhada com o quê?

Fernanda Teresa - Não consigo ... não me consigo lembrar ... exactamente.

 

Juiz Presidente - Se não se lembra a Sr.ª D. Teresa, diz-me não me lembro. E ponto final. Agora não vai tentar lembrar-se de coisas, que a Senhora neste momento sente que não se lembra.

Fernanda Teresa - Claro.

Juiz Presidente - Compreende?

Fernanda Teresa - Não tenho a certeza.

 

Perguntada acerca da nitidez das fotografias, limitou-se a reafirmar "foi tudo rápido":

 

Procurador - Também não? Diga-me uma coisa. Recorda se as fotografias eram fotografias de interior ou de exterior? Se eram fotografias tiradas numa casa, por exemplo? Num espaço fechado ...

Fernanda Teresa - Não havia ...

Procurador - Ou se era no exterior?

Fernanda Teresa - Não, não havia jardins, não havia nada, não. Era só a imagem da pessoa, não é?

Procurador - As fotografias eram nítidas? Eram nítidas? Eram claras? Quer dizer, via-se bem?

Fernanda Teresa - Foi tudo rápido.

 Interrogada pela advogada de Jorge Ritto, esclareceu que a fotografia de Carlos Cruz seria de quase corpo inteiro, porque se conseguia pelo menos ver a parte genital:

Advogada - E, essa fotografia que consegue recordar onde terá visto o Sr. Carlos Cruz foi tirada a uma certa distância, porque conseguia ver pelo menos até à parte genital?

Fernanda Teresa - Exacto.

Advogada - O rosto da pessoa era perfeitamente visível nessa foto?

Fernanda Teresa - Para mim naquela altura ... quer dizer ... (...)

 

E admitiu ainda que a sua convicção pode ter sido influenciada pelos boatos que ouvira (isto é, a história da "banhada"):

 

Advogada - Essa convicção aliada ou melhor. Não terá baseado essa convicção nos tais boatos que ouviu?

Fernanda Teresa - Também os ouvi é verdade. E isso deu-me ainda mais a certeza que, que era ele, não é? Quer dizer, um e um faz dois ...

 

 

            Seguiu-se o interrogatório da defesa de Carlos Cruz. Foi expressiva a forma como reconheceu que talvez tivesse "transferido" para os arguidos do processo a revolta que sentira por abusos de que ela própria fora objecto, mas feitos por outros:

 

Advogado - Porque é que a Senhora que não foi abusada por estes arguidos, mas foi abusada por outras pessoas que a marcaram, e nós acreditamos que sim, duma forma muito dura, porque é que neste momento a Senhora exprime a sua revolta relativamente a estes arguidos e não relativamente às pessoas que abusaram de si?

Fernanda Teresa - Mas eu estou, eu testemunhei de uma coisa que vi.

Advogado - Não é isso. A Senhora está muito revoltada. Muito revoltada, e compreende-se que seja revoltada por essas marcas que teve no seu passado. Mas a Senhora foi abusada por pessoas em concreto que abusaram de si. Porque é que a Senhora, no fundo, expressa essa sua revolta relativamente a quem não abusou de si e não relativamente àqueles que abusaram de si. Porque aqueles que abusaram de si, a Sr.ª D. Teresa diz, eu não quero falar nisso. Mas relativamente a estes que aqui estão a ser julgados, a Senhora diz que revolta-se nos termos que ouvimos há pouco. Que explicação é que tem para isto?

Juiz Presidente - Compreende o que o Sr. Doutor está a perguntar, Sr.ª D. Fernanda Teresa? Sr.ª D. Fernanda Teresa compreendeu ou não o que o Sr. Doutor está ...

Fernanda Teresa - Não percebi ... percebi.

Juiz Presidente - Percebeu? Tente responder porque para o Tribunal também é importante perceber esse ...

Fernanda Teresa - Os actos não são todos iguais? Eram meus irmãos também, não? Hum? Não éramos da mesma carne, do mesmo sangue, mas éramos irmãos.

Advogado - Mas ó Sr.ª D. Teresa? A Sr.ª D. Teresa não sabe se estes senhores que estão ali sentados atrás, se eles fizeram ou deixaram de fazer o que quer que seja. Relativamente aos outros que abusaram ...

Fernanda Teresa - Eu acredito naquilo que os meus colegas me disseram.

Advogado - Sr.ª D. Teresa? A Senhora não foi abusada por aquelas pessoas. Não assistiu a nenhuns actos praticados por aquelas pessoas. Porque é que a Senhora que foi abusada por pessoas, que existem, que a Senhora sabe quem são, porque é que a Senhora exprime a sua revolta relativamente a estes e não relativamente aos outros?

Fernanda Teresa - Penso também nos meus colegas. Talvez também seja uma forma inconsciente de querer ... de querer tirar ... (sobreposição de vozes) ... de mim, não sei ...

Advogado - A Senhora, no fundo, está neste ...

Juiz Presidente - Deixe acabar, deixe acabar Sr. Doutor. Deixe acabar. Termine o que estava a dizer, Sr.ª D. Fernanda Teresa.

Fernanda Teresa - Como se fosse um certo alívio ... uma certa ... um certo ...

Juiz Presidente - E porquê?

Fernanda Teresa - ... peso que tenho em cima de mim. Não sei. Não sei exprimir muito bem

Advogado - Então, quer ... vamos lá ver se eu estou a interpretar bem. A Senhora no fundo quando se revolta contra estas pessoas e se sente aliviada

Fernanda Teresa - Ai, aliviada ...

Advogado - ... é como se estivesse a revoltar contra aqueles que foram os seus próprios abusadores?

Fernanda Teresa - Não nego ...

 Advogado - Que seja assim?

Fernanda Teresa - ... inconscientemente deve ser. Talvez sim. Não nego. (...)

 

Advogado - ... esta revolta, contra estes homens, com a intensidade com que a Senhora as sente e se diz que se sente aliviada, no fundo está a transferir para estas pessoas aquilo que lhe fizeram em si outras pessoas. É assim?

Fernanda Teresa - Sim. É.

 

Admitiu então que era possível ter visto uma fotografia de alguém parecido com Carlos Cruz:

 

Advogado - Recorda-se. Recorda-se de ter dito relativamente à questão do Sr. Carlos Cruz, "e se eu não tiver visto bem? Não suporto a ideia dum homem inocente estar preso". Recorda-se de ter dito ...

Fernanda Teresa - Recordo.

Advogado - Recorda. Quer isto dizer que ainda que a Senhora, quando viu as fotografias, tenha tido a convicção de que era o Sr. Carlos Cruz, e D. Teresa eu acredito que a Senhora genuinamente tenha agarrado nessas fotografias que estavam nessa caixa de sapatos, e tenha julgado que viu o Sr. Carlos Cruz. Não estou, não estou a pôr isso em causa, percebe? Pronto. Agora, a Sr.ª D. Teresa já disse que viu as fotografias ...

Fernanda Teresa - Foi rápido.

Advogado - Muito rápido.

Fernanda Teresa - Eram muitas.

Advogado - Eram muitas. E viu-as muito rapidamente? Foram-nas passando. Ainda que a Senhora esteja convencida que viu o Sr. Carlos Cruz pode acontecer que fosse uma pessoa muito parecida com o Sr. Carlos Cruz, ou não pode?

Fernanda Teresa - É possível.

Explicou como tinha ficado perturbada ao ver o namorado nas fotografias:

 Advogado - Mas diga-me uma coisa. A mim faz mais sentido que aquela que lhe tenha chamado mais a atenção tenha sido a do Jaime. A Senhora não ficou perturbada quando viu o Jaime?

Fernanda Teresa - Fiquei.

Advogado - Ficou?

Fernanda Teresa - Fiquei.

Advogado - De tudo aquilo que a senhora viu naquela caixa, a fotografia que a perturbou mais foi a do Jaime ou foi ...

Fernanda Teresa - Foi a do Jaime porque tínhamos, claro ... tínhamos um contacto pessoal.

 

Fernanda Correia, que já reconhecera que o facto de ter ouvido a história da "banhada" a podia ter influenciado, admitiu igualmente que podia ter ocorrido uma pura gabarolice:

 

Advogado - Portanto, tinha havido já ... tinha ouvido comentários sobre o Sr. Cruz. Recorde-se lá, em que contexto é que ouviu esses comentários. Foi num contexto de brincadeira? Em que contexto é que ouviu?

Fernanda Teresa - Alguns gostavam de falar de certas experiências. Quer dizer, em relação às raparigas e coisas assim, não é? Puxa conversa para ali, puxa conversa ... prontos. E a gente de vez em quando ouvia-a, não é?(...)

Advogado - Mas iam-se vangloriar junto de si que gostavam de homens?

Fernanda Teresa - Não. Não. Por vezes era eles, piadas que eles se ... pronto, bocas não é ... que se davam uns aos outros, mesmo por vezes quando se zangavam, por exemplo.(...)

Advogado - Sim senhor. Ouviu bocas sobre o Sr. Carlos Cruz. Mas ouviu de algum deles, alguma vez algum ter dito que tinha tido intimidades sexuais com o Sr. Carlos Cruz? Veja lá se, se lembra. Lembra-se ... uma coisa é a gente ouvir bocas e tal ... o Cruz ...

Fernanda Teresa - Claro. Lembro-me foi do ... Jaime, uma altura ter dito que estava no Mosteiro dos Jerónimos e que ao entrar para o carro, eu não estive lá não vi, mas lembro-me disso, e que tinha tirado metade do dinheiro. (...)

Advogado - Quando é que ele lhe contou isso?

Fernanda Teresa - Não. Estávamos todos em grupo.

Advogado - Sim.

Fernanda Teresa - Prontos. E que normalmente tinha tirado metade, prontos, metade do dinheiro ao Carlos Cruz, foi o que ele disse, e que houve uma boca que disse, olha afinal, prontos que ele disse, olha afinal de contas não tiraste todo. Uma coisa assim e aquilo ...

Advogado - Quem é que disse ...

Fernanda Teresa - Ficamos assim um bocado, não é?

Advogado - Quem é que disse isso?

Fernanda Teresa - Mas, é verdade ou não é?

Advogado - Quem, quem é que disse isso?

Fernanda Teresa - O Jaime, que estava a contar. (...)

Fernanda Teresa - Houve, houve muita tinta em relação a isso, porque prontos ... não era, não era normal eles falarem directamente assim de clientes, compreende?

Advogado - Sim. Mas ...

Fernanda Teresa - Todos nós sabíamos, eles nunca diziam nome ... quer dizer, não ... mas aquilo para eles era uma palhaçada, aquilo foi um gozo para eles, de, prontos. Saber que não tinha feito nada e que tinha, quer dizer .,.. foi o que eles contaram, não é?

Advogado - Olhe ...

Fernanda Teresa - ... e que tinham feito isso.

Advogado - Isso podia ser verdade, mas também podia ser uma ...

Fernanda Teresa - Ai é, não estive lá para ver.

Advogado - Sim. Também podia ser uma gabarolice.

Fernanda Teresa - Mais própria da, pois da idade de qualquer um.

Advogado - Podia ser?

Fernanda Teresa - Podia ser. Admito.

 

Refere ainda - no que coincide, quanto à recordação desse episódio, com o depoimento de José Carlos Santos - que essa foi a única ocasião em que ouviu falar de Carlos Cruz:

Advogado - (...). Além dessa conversa lembra-se de mais alguma outra que incluísse o Sr. Carlos Cruz, ou só se lembra dessa?

Fernanda Teresa - Não, não me recordo.

Advogado - Só se lembra desta, é?

Fernanda Teresa - É.

 Menciona a pressão dos jornalistas:

 Fernanda Teresa - O problema com os jornalistas é que eu nunca estive preparada para ... nunca pensei, nunca imaginei que pudesse passar por isto. O que me fez bastante falta foi ter, lá está o tal apoio, alguém que me soubessem, agora não fala, está a entender o que eu quero dizer? Eles podem, eles têm uma capacidade muito ... eles são muito ... prontos, têm uma grande capacidade para manipular as pessoas. Eu como estava ...

Juiz Presidente - Porque é que diz isso?

Fernanda Teresa - Porque eu não queria dizer certas coisas e acabava sempre por as dizer. E estava cheia, uma pessoa estou cheia de medicamentos (...). Eu cheguei, eu cheguei a passar noites, prontos, noites brancas, cheguei a, a não dar, a não alimentar os meus filhos, a culpabiliza-los de existir, quer dizer passei por momentos mesmo chatos, não é? Que eu não desejo isto nem ao meu pior inimigo. (...)

 

E fala, de maneira muito persuasiva, da obsessão de alguns jornalistas por Carlos Cruz:

 

Advogado - Mas ó D. Teresa, mas eles andavam atrás do Cruz, não era?

Fernanda Teresa - Depende dos jornalistas. Percebe?

Advogado - Eles andavam atrás do Cruz. Portanto ...

Fernanda Teresa - É muito complicado.

Advogado - D. Teresa tudo o que a Senhora dissesse sobre o Sr. Cruz, era o que eles queriam ouvir, ou não era?

Fernanda Teresa - Eles queriam massacrá-lo mesmo. Desculpe a expressão.

 

Tudo o que vai relatado já fora um grande serviço que esta jovem - sofrida, mas sem que, naquele momento decisivo, o sofrimento lhe tivesse toldado a dignidade - prestara para a descoberta da verdade.

Mas o mais surpreendente ainda estava para vir, quando Fernanda Teresa Correia - que no inquérito já fizera juntar aos autos as páginas de uma espécie de diário, onde relatava, sem nomes, os abusos de cariz sexual de que fora objecto - acabou por confessar que lhe tinham oferecido dinheiro para que silenciasse o nome de quem efectivamente dela tinha abusado:

 

Advogado - Porque é que a Senhora não identificou as pessoas que efectivamente tinham abusado de si?

Fernanda Teresa - Não cheguei. Ainda estou a escrever. Ainda não cheguei até esse ponto. (...)

Advogado - Não lhe vou levar muito mais tempo, compreendo que isto é muito doloroso para si e são só apenas mais duas ou três perguntas, acho que a Sr.ª D. Teresa tem deposto com boa fé nesta audiência e merece ser libertada quanto antes disto. Esta pergunta já a tinha feito antes do intervalo e eu compreendo que possa ser um bocadinho doloroso para si, mas tente dar uma resposta sem ter que entrar em detalhes sobre isto. A D. Teresa quando entregou aquelas folhas às Sras. Procuradoras, são aquelas folhas que estão aqui nos autos, conta um conjunto de factos da sua vida (...). Por que é que a D. Teresa que foi abusada por pessoas em concreto, que lhe fizeram mal que a marcaram na vida, contra as quais a senhora luta e muito bem sendo feliz, procurando ser feliz, porque é que a D. Teresa não denunciou essas pessoas? Porque é que em ... por que é que para além de ter dito tudo o que disse, porque é que não disse eu fui abusada por fulano, beltrano e sicrano? Porque esses é que foram as pessoas que lhe fizeram mal. Porquê?

Fernanda Teresa - Se eu responder a essa pergunta queria saber se ... o meu receio é, eu poderia responder a essa pergunta sem problema nenhum mas, para isso teria que ir buscar outros factos e isso seria necessário talvez que me voltassem a chamar aqui para novamente para depor e não queria também implicar outras pessoas que estiveram também a meu lado durante um certo período, na altura vim às escondidas para cá, para Lisboa. E estava a pensar por, prontos, por ... passei por várias fases compreende? E naquela não era mais, não era mais boa. Era a minha maneira de prontos, digamos que tomei uma decisão naquela altura para o lado que não estava certo, compreende? Quando cheguei a Lisboa estava com outras ideias, de ir ter com essas pessoas em questão e houve um colega meu, um colega prontos, que entrou em contacto comigo por vias dessa, prontos, dum, dum personagem. (...)

Juiz Presidente - Porque é que nunca disse? Porque é que nunca identificou, nunca deu um rosto às pessoas que lhe fizeram mal?  É isso que o Sr. Doutor está a perguntar.

Fernanda Teresa - Porque fui avisada. Que se tentasse ir mais longe demais que ... que sairia deste país com os pés para a frente.

Advogado - E foi avisada por quem?

Fernanda Teresa - O meu tal colega que estava em relação com a pessoa em questão ... ofereceram-me, ofereceram-me dinheiro, para ser sincera no início aceitei.

Advogado - Aceitou?

Fernanda Teresa - Aceitei, mas depois arrependi-me porque eles depois entretanto queriam outras, começaram a ser muito exigentes. Teria que aceitar certas condições. E recusei-me no mesmo dia, recusei-me a fazê-lo. E entreguei o dinheiro a esse tal colega.

Advogado - Devolveu o dinheiro, foi?

Fernanda Teresa - Devolvi o dinheiro, sim. Dei-me conta que era uma loucura aquilo que estava a fazer que estava a ir contra os meus próprios princípios, compreende? 

 

Fernanda Correia revelou ainda que esse pagamento era feito para que ela se concentrasse numa acusação a Carlos Cruz:

 

Advogado - Sr.ª D. Teresa, eu não quero mexer muito nessa ferida que compreendo que existe para si e acho que fez muito bem ter devolvido o dinheiro e compreendo muito bem que tenha tido essa hesitação. Diga-me só uma coisa. Quiseram-lhe impor certas condições. Que tipo de condições?

Fernanda Teresa - Não queriam que eu fosse, que eu fosse depor em primeiro lugar e em segundo lugar, uma coisa que eu não, prontos, queriam que eu, que eu acusasse o seu cliente de me ter, prontos, de ter abusado da minha pessoa e isso não é verdade. Eram essas condições e sair do país igualmente.

Advogado - Portanto, queriam que a Sr.ª D. Teresa acusasse o Sr. Cruz de ter abusado. E a Senhora ...

Fernanda Teresa - Que me concentrasse unicamente nessa acusação. Foi o que o meu ... prontos, foi o que o meu colega disse.

 

Finalmente, recusou-se a mencionar o nome da pessoa que lhe quis pagar, que seria alguém "com muito poder" e "intocável":

 

Advogado - D. Teresa eu tenho que lhe perguntar. Quem foi a pessoa, quem foi o seu colega que lhe deu o dinheiro e quem foi a pessoa que deu o dinheiro a esse seu colega. Faça isso pela sua própria dignidade também, D. Teresa.

Fernanda Teresa - Peço desculpa. Eu não posso responder a essa pergunta. Mesmo que tenha que pagar as consequências, não posso fazer isso.

Juiz Presidente - Porquê Sr.ª D. Fernanda Teresa?

Fernanda Teresa - Porque é uma pessoa como ... é uma pessoa muito bem vista neste país. É uma pessoa com muito poder. É uma pessoa intocável. Não posso fazer isso. Cheguei-me a encontrar uma altura com essa pessoa em questão.

 

A defesa de Carlos Cruz tinha o direito processual de exigir que Fernanda Correia revelasse esses nomes - o do seu abusador e o do colega que servira de intermediário no suborno -, mas entendeu que não tinha o direito moral de o fazer. A história da vida de Fernanda Correia nada tinha, afinal, a ver com os crimes que estavam a ser julgados e o reconhecimento (e gratidão) pela sua comovente prestação levou a que renunciasse a esse direito, cessando, naquela hora, um sofrimento que cabia respeitar.

 

 

Os jovens (após 2002): v) Síntese

              O que é que fica?

            Uma gabarolice de um jovem que se vangloria de uma inexistente "banhada" a uma personagem da televisão, já esclarecida e reduzida a uma "treta".

            Uma convicção genuína de uma jovem que, numa fracção de segundos, viu umas fotografias "Polaroid" - já de si pequenas e com pouca definição, o que é agravado quando se trata de fotografias de corpo inteiro, como era o caso, onde o espaço da "cara" naturalmente diminui -, que, em julgamento, admite que pode ter cometido um erro, talvez influenciada por ter assistido à gabarolice do namorado, quando falava de uma "banhada" que teria dado a Carlos Cruz, a qual, afinal, fora uma mentira.

            Qualquer um terá que admitir que isto não serve para sustentar, com um mínimo de consistência, que Carlos Cruz alguma vez esteve em casa de Jorge Ritto e que se deixou fotografar em "poses" de natureza sexual.

 

Os educadores revisitados: i) enumeração

  

            Importa agora revisitar os funcionários da Casa Pia que tiveram intervenção no episódio de 1982, a saber, os quatro educadores que, liderados por Maria Isabel Evangelista Mendes, localizaram e receberam Jaime Pimenta e Fernanda Correia após a sua fuga, e a directora do colégio Nuno Álvares, Maria Jorge Brandão, que interrogara os rapazes Jaime Pimenta, Orlando Pereira e José Carlos Santos.

            Os quatro educadores depuseram em audiência em julgamento. Maria Jorge Brandão já faleceu, mas, em julgamento, procedeu-se à leitura das suas declarações prestadas em inquérito.

 

Os educadores revisitados: ii) Isabel Evangelista

  

            Maria Isabel Evangelista era a responsável da secção feminina do colégio Nuno Álvares e foi ela quem comandou a operação de resgate dos dois namorados. Está reformada e foi ouvida a 17 de Janeiro de 2008.

            Confirmou o que já constava do relatório de que foi a principal autora.

            Explicou porque foi a casa de Jorge Ritto:

 

Maria Isabel Evangelista Mendes - O aluno que me disse isso, foi o Zé Carlos. Chamava-se ... chama-se, não sei, eu nunca mais o vi, há muitos anos que não o vejo.

Advogado - Então diga, continue, continue.

Maria Isabel Evangelista Mendes - Mas eu disse:     - Então se tu sabes que ela foi para casa do tio e tu sabes onde mora o tio? - Eu sei, mas não sei lá ir sozinho. Não sei ir ensinar. - Então mas eu preciso de encontrar a Fernanda. E então ele disse-me quem lhe pode ensinar é o Orlando. Eu fui ter com o Orlando e ele de princípio dizia que não sabia e não queria ir porque era muito amigo do Jaime e depois o Jaime zangava-se, mas acabou por ir. Aí eu fui ter com o meu colega e fomos os dois onde o Orlando nos levou.

 

E como os encontrou a fingir que dormiam, depois de ter convencido o porteiro a abrir a porta de casa do embaixador:

 

Maria Isabel Evangelista Mendes - (...) o Sr. Embaixador deu-me autorização para abrir a porta ao sobrinho. E depois disse, mas o Sr. Doutor não está cá. Eu disse: - Então e se não estava cá para que é que lhe abriu a porta? Assim qualquer conversa com o porteiro. Mas fomos lá acima e então ele foi-me abrir a porta e eles estavam logo na sala de entrada, felizmente ...

Advogado - Eles quem?

Maria Isabel Evangelista Mendes - Os dois miúdos deitados num sofá cada um para seu lado, vestidos, pronto ...

Advogado - A Teresa e o Jaime?

Maria Isabel Evangelista Mendes - Como?

Advogado - A Teresa e o Jaime?

Maria Isabel Evangelista Mendes - A Teresa e o Jaime. Eu peguei na Fernanda, levantei-a, eles fingiam que estavam a dormir ...

 

Falou das fotografias, que diz que não chegou a ver porque não quis. Percebe-se que a educadora teve a noção - por aquilo que os rapazes diziam - que as fotografias podiam não ser decentes, mas, para ela, não cabia na sua missão outra coisa que não fosse ir buscar a sua pupila e o namorado:

 

Advogado - Essas tais fotografias que o Orlando ... não foram à procura delas? Não trouxeram nada?

Maria Isabel Evangelista Mendes - Não, não, nada, nada, nada porque eu não ia ... e fiquei muito contente por os miúdos estarem mesmo ali à porta da rua, não ter que entrar em casa.

Advogado - Trouxe-os para ... vieram-se todos embora? 

Maria Isabel Evangelista Mendes - Viemos todos embora. 

 Advogado - Então e depois? Eles deram alguma explicação? O que é que estavam ali a fazer?

Maria Isabel Evangelista Mendes - Não, não deram explicação nenhuma nem eu lhes pedi, tão pouco, explicação. A intenção era de cada um ... eles vieram a brincar um com o outro e dizerem que ainda bem que eu não tinha visto as fotografias, mas eu quando cheguei ao colégio disse foi aos meus colegas ... ao meu colega aliás: - Vocês fazem o relatório dos vossos rapazes que eu faço o da minha rapariga. Eu faço aquilo que fiz, faço o relatório do que fiz para encontrar a minha aluna e o que ela mais possa dizer, não é? E vocês façam os dos vossos rapazes. E foi assim, eu fiz o meu relatório (...). Eu tinha a ver era com a minha aluna. Depois tudo se acalmou, ainda fomos à Policia, chamados porque ... mas depois tudo se calmou, a Sr.ª Directora saiu, um Assistente Social que lá estava saiu, o Sr. Provedor que estava nessa altura saiu, veio tudo gente nova e nunca mais se falou no caso. Nunca mais. (...).

Advogado - Mas percebeu que tipo de fotografias eram? Se eram fotografias...

Maria Isabel Evangelista Mendes - Não, o Jaime ... o Jaime é que disse que "ainda bem que a Senhora não ... ainda bem que D. Isabel não viu as fotografias, porque podia não gostar, ou podia" ... Ele até usou um termo assim, "podia desmaiar". E, mas eu não liguei porque o Jaime não via com bons olhos eu não deixar sair a Fernanda a toda a hora que ele ia lá procurá-la. Portanto não liguei ... não liguei muito aquilo, para ser franca não liguei.

Advogado - E diga-me uma coisa. E portanto, eles não disseram o que é que eram as ... eles disseram só que eram as fotografias que tinham qualquer coisa lá de provocatório, mas ...

Maria Isabel Evangelista Mendes - Não. Não.

Advogado - Não disseram o que era?

Maria Isabel Evangelista Mendes - Nada. Nada. Nunca ouvi nada.

Advogado - Nem que pessoas é que estavam nas fotografias?

Maria Isabel Evangelista Mendes - Não, não. Nunca falaram em nomes de ninguém.

 

Manifestou ainda a sua objecção quando soube que, no relatório de Maria Jorge Brandão, havia uma referência a Carlos Cruz, que ela não ouvira:

 

Advogado - Quando é que a Senhora tomou conhecimento que esta Sr.ª Maria Jorge Brandão no final do relatório diz que os educadores disseram que o locutor Carlos Cruz? Quando é ... a Senhora tomou conhecimento que isto estava escrito neste relatório?

Maria Isabel Evangelista Mendes - Quando li o ... quando li o relatório e disse ... fiz até uma observação, mas eu não sei nada disto. E a resposta foi-me dada assim, está aí tudo quanto eles disseram.

 

E reafirmou nunca ter ouvido nada sobre Carlos Cruz:

 

Advogado - A Senhora não ouviu nada, não ouviu nenhuma referência ao Sr. Carlos Cruz?

Maria Isabel Evangelista Mendes - Não.

 

 

Finalmente, descreveu as pressões jornalísticas de que se considerava vítima, pelas quais se pretendia que ela dissesse que Carlos Cruz estava nas fotografias:

 

Advogado - (...). Eu agora queria-lhe perguntar se ao longo destes 5 anos em que isto já veio nos jornais, se a Senhora alguma vez foi abordada por pessoas, sejam elas quais forem, para pressionarem ... Agora diga isto, diga aquilo ... diga que viu lá fotografias do Carlos Cruz, diga que não viu, diga que não soube de nada ...

 Maria Isabel Evangelista Mendes - ... infelizmente sim.

Advogado - Então e diga lá quem é que ...

Maria Isabel Evangelista Mendes - Principalmente ao telefone e foram lá a casa, eu limitei-me na televisão a dizer aquilo que apenas estava no meu relatório.

Advogado - E quem é que foram essas pessoas que fizeram essas ...

Maria Isabel Evangelista Mendes - Pelo telefone, não me diziam quem era, pelo telefone. E houve uma Senhora até que uma vez me telefonou e eu, ainda feita parva talvez, não lhe desliguei o telefone. Que ela dizia se não disser que viu as fotografias e se não disser não sei quê,  eu tenho provas e vou prendê-la ... uma série de disparates. Eu tenho um bocadinho, felizmente que o médico, estou medicada e não tenho tido problemas, mas ... que vem de longe um bocadinho de epilepsia. E nessa noite passei tão mal, fui parar ao hospital.

 

Os educadores revisitados: iii) Francisco Góis Faria

  

            No reboliço que se seguiu ao desabrochar do processo da Casa Pia, toda a gente fala de fotografias que não viu, alguns dos quais até julgando que viu. Teresa Costa Macedo fizera o país acreditar que tinham sido recolhidas fotografias da casa do embaixador Jorge Ritto, nas quais pessoas famosas se exibiam sexualmente em práticas pedófilas.

            Francisco Góis Faria fora educador da Casa Pia, vinte anos atrás e durante pouco tempo. Não escapou à abordagem da comunicação social, mas, em entrevista ao "Diário de Notícias" da Madeira, publicada a 29 de Novembro de 2002, não recordava nada de relevante em concreto, remetendo para o relatório de que fora um dos signatários.

            Porém, quando chegou à sua vez de ser inquirido em audiência de julgamento, o que aconteceu no dia 28 de Janeiro de 2008, vinha com a cabeça cheia de fotografias que julgava ter visto, mas que acabou por reconhecer que, afinal, quase certamente não vira.

            Góis Faria revelou como a memória nos pode atraiçoar, mas demonstrou também, numa posição difícil, ser um homem sério, capaz de, no momento decisivo, reconhecer o engano.

            O antigo educador relatou uma experiência consentânea com o que estava no relatório de 1982, mau grado uma ou outra falha, que vinte anos de distância bem justificam.

            Acerca das fotografias, começou por dizer que tinha a impressão de que tinham sido recolhidas fotografias e de que ele próprio as tinha estado a folhear, mas depois afirmava que não era capaz de jurar que as tinha visto:

 

Advogado - Sr. Engenheiro, recorda-se de terem visto ... viram ou não viram algumas fotografias, alegadamente com cariz sexual em casa do Sr. Embaixador? O Senhor viu alguma coisa?

Francisco Goes Faria - Eu sei que foram vistas fotografias mas eu não fui ao apartamento, não vi nada no ... não vi essas fotografias no apartamento

Advogado - Quem viu as fotografias o rapaz e a rapariga, ou mais alguém?

Francisco Goes Faria - Eu tenho a impressão que entretanto, houve alguma recolha de fotografias por parte da minha colega ou da colega que estava comigo, digamos, a educadora da aluna.

Advogado - O Senhor viu as fotografias?

Francisco Goes Faria - Depois no lar Nuno Álvares., eu tenho a ideia que realmente tive a folhear as fotografias, tenho essa vaga ideia.

Advogado - Tem a vaga ideia de quê?

Francisco Goes Faria - De que, não foi lá no apartamento, depois no lar Nuno Álvares onde eu trabalho, onde eu trabalhava eu tenho a ideia que entretanto tive acesso às fotografias.

Advogado - A Senhora ... a sua colega que já depôs aqui a semana passada diz que não trouxe fotografias nenhumas.

Francisco Goes Faria - Pronto, é por isso que eu ... isto realmente não ... eu estou a dizer que tenho ideia ... eu tenho a ideia que depois no lar Nuno Álvares enfim, fora vistas ... mas eu sinceramente, isto ... estas, tudo isto aconteceu realmente há muito tempo, a única coisa que eu sei é que falou-se de fotografias, havia fotografias e eu sinceramente, estou-lhe a dizer que tinha a ideia que tinha visto fotografias, mas não juro. Não juro. Não sei, não sei ao certo.

 

Mais à frente esclareceu que não reconheceu ninguém nas fotografias e que seguramente não as viu em casa de Jorge Ritto, porque não chegou a entrar no apartamento:

 

 

Francisco Goes Faria - Claro, eu não ... como eu lhe disse, sei que falaram de fotografias, foram vistas fotografias, esse é uma matéria que realmente não estou em condições de responder categoricamente à sua pergunta porque isso aconteceu realmente há muito tempo e falou-se de fotografias, agora se ... a ideia que eu tenho é que realmente possa ter folheado fotografias, mas a verdade é que não vi ninguém conhecido em fotografias, não vi nada, de maneira que sobre esse assunto não tenho nada formado, digamos, que não estou capaz de responder a essa questão.

Advogado - Sim senhor. Portanto, o Senhor lá no local ver as fotografias não viu?

Francisco Goes Faria - Não vi fotografias porque não fui ao apartamento.

 

Logo a seguir, concluiu que provavelmente não as teria chegado a ver:

 

Advogado - O Senhor recorda-se de ter reconhecido alguém nalguma fotografia?

Francisco Goes Faria - Não, não. Eu ... a ideia que eu tenho é se eu vi as fotografias que pronto, já não tenho a certeza, a verdade é que não reconheci ninguém. A ideia que eu tenho é que não cheguei a ver ninguém em fotografia nenhuma.

Advogado - Pronto. E não tem sequer a certeza se viu essas fotografias depois no colégio?

Francisco Goes Faria - Exacto. Eu tenho a ideia que depois realmente falei com a Directora do Nuno Álvares e nesse encontro falou-se de fotografias. Agora, sou sincero, não ... não consigo precisar se vi efectivamente fotografias.

 

Recordava-se da insistência dos jornalistas para que ele revelasse o que sabia acerca das fotografias:

 

Advogado - O Sr. Engenheiro foi contactado depois deste escândalo ter rebentado por jornalistas que procuraram saber o que é que o Senhor sabia disto e se tinha ... ou não teria visto fotografias?

Francisco Goes Faria - Portanto, os jornalistas contactaram-me com muita insistência, agora a segunda parte da pergunta, é se me falavam em fotografias? Era isto a segunda parte?

Advogado - Sim, sim.

Francisco Goes Faria - Portanto, fui abordado por jornalistas, agora a segunda parte da pergunta está-me ... está-me a perguntar se eles queriam ... perguntavam-me se havia fotografias, é isso?

Advogado - Sim.

Francisco Goes Faria - É. Portanto, eu tenho a ideia que sim, pois realmente perguntavam-me se eu tinha conhecimento e eu de facto já na altura, assim como agora tinha, já na altura tinha a noção que havia fotografias à mistura, já na altura disse que não conseguia precisar ninguém nas fotografias nem tinha certezas se tinha visto ou não, agora tenho a ideia que realmente vi alguma coisa, mas de facto não sei, não sei.

 

Tinha uma ideia que as fotografias teriam a ver com actos sexuais:

 

Advogado - Diga-me uma coisa, por favor. Essas fotografias percebia-se ou não, se eram fotografias de actos sexuais?

Francisco Goes Faria - Dá-me a ideia que sim, falavam nisso. É, dos comentários que de facto eram feitos, eram fotografias para aí viradas.

 

Terminou a dizer que não conseguia precisar se tinham ou não sido trazidas fotografias da casa do diplomata:

 

Juíza Presidente - Isso eu já compreendi. Quando lá foram, os senhores trouxeram alguma coisa? Quando voltaram trouxeram alguma coisa?

Francisco Goes Faria - Portanto, como quem viu o apartamento foi a minha colega e eu realmente sou sincero, na altura também não ... também a minha curiosidade também não ... nunca fui muito curioso, não, não ... neste momento não consigo precisar se trouxeram ou não.

 

E rematou a concluir que cada vez estava, afinal, mais convencido que não vira mesmo nenhuma fotografia:

 

Advogada - Portanto, não tem memória nenhuma em concreto ... não consegue visualizar nenhuma fotografia, na sua memória, digamos assim?

Francisco Goes Faria - Não, é até depois desta conversa que estamos a ter agora cada vez mais ... cada vez menos me surgem, quer dizer, eu começo a imaginar realmente a tentar-me lembrar se de facto houve fotografias e cada vez mais me convenço que não vi fotografia nenhuma.

 

Os educadores revisitados: iv) Henriqueta Pio

  

            Henriqueta Pio, agora Henriqueta Pio Melo, subscreveu o relatório de Maria Isabel Evangelista Mendes, mas só esteve com a Fernanda Correia após o regresso desta ao colégio. O que soube, soube pela colega.

            Ouvida em audiência de julgamento, em 12 de Março de 2007, negou que tivesse ouvido qualquer referência a fotografias:

 

Advogado - Como é que era o nome da jovem? Recorda-se?

Henriqueta de Melo - Fernanda.

Advogado - Fernanda. Sabe onde é que eles foram encontrados?

Henriqueta de Melo - Sim, soube pela minha colega que depois no dia a seguir me relatou o que é se... o que é que tinha acontecido.

Henriqueta de Melo - Portanto, ela o que me relatou foi que os jovens estavam, portanto ali no maple junto à porta e que agarrou na miúda e que a trouxe com ela.

Advogado - Não se referiu a nenhumas fotografias que foram encontradas se não?

Henriqueta de Melo - Não.

 

E reafirmou-o de forma peremptória:

 

Advogado - Nenhum deles lhe fez qualquer referência à existência de fotografias ou que tivessem trazido fotografias da casa?

Henriqueta de Melo - Não.

Advogado - De certeza absoluta...

Henriqueta de Melo - Não, não. 

 

E tornou a dizê-lo, após insistência do procurador da República:

 

Procurador - Sra Dra. uma última pergunta: a sra dra, há pouco respondeu ao sr. Dr. Ricardo Sá Fernandes, relativamente à questão das fotografias e eu pergunto-lhe: a memória que a sra. Dra. tem neste momento é a de que a sua colega não lhe fez referência a nenhumas fotografias ou que a sra dra. não recorda que essa referência tenha sido feita? Pode lhe parecer a mesma coisa, no meu entender não é exactamente a mesma coisa.

Henriqueta de Melo - Eu realmente não me recordo de terem falado nas fotografias.

  

  Os educadores revisitados: v) Fernanda Flora Gomes

  

            Fernanda Flora Gomes - actualmente mulher do arguido Manuel Abrantes, situação que, à época, estava longe de se verificar - é outra das subscritoras do relatório de 1982. Depôs a 30 de Abril de 2007, no mesmo sentido dos seus colegas.

            Porém, contrariando a versão de Maria Evangelista Mendes, reteve na memória a impressão de que a colega teria chegado a ver fotografias "indecentes", o que aquela, confrontada directamente com a discrepância, veio a negar de forma enfática.

            Vejamos o que disse Fernanda Flora Gomes:

 

Advogado - Alguma dessas pessoas lhe falou em fotografias que terá visto?

Fernanda Flora - A Isabel Mendes falou, quando chegou.

Advogado - Falou-lhe em que termos?

 Fernanda Flora - Ela não se adiantou muito. Ela chegou um bocadinho chocada "que... que horror, que porcaria... que coisa". O vocabulário dela era sempre muito comedido. Portanto, que tinha visto fotografias, pelo vocabulário deu para perceber que não eram fotografias familiares, digamos. Para ela dizer "que nojo, que porcaria". Mas também não adiantou mais do que isso. Eu lembro-me, na altura, que lhe perguntei se, se viu, não trouxe, não... uma ou duas para... E se calhar pela idade, ela era uma pessoa experiente, disse-me qualquer coisa como: "não, não. O meu interesse era trazer a miúda. Já me chega invasão de domicílio quanto mais furto. Não."

Advogado - Essa senhora fez-lhe alguma alusão às pessoas que figuravam retratadas nessas fotografias?

Fernanda Flora - Não. Limitou-se a dizer-me que eram fotografias indecentes

 

Foi clara no sentido de que não lhe referiram que tivesse sido reconhecida qualquer pessoa nas fotografias:

 

Advogado - Nem quem é que estava nas fotografias?

Fernanda Flora - Nunca me foi referido quem é que estava nas fotografias. E quanto ao conteúdo, como digo, o vocabulário não passou desse: indecente...

 

E confirmou a afirmação de Maria Isabel Evangelista, no sentido de que não teria tido justificação a inclusão de Carlos Cruz no relatório da directora:

 

Procurador - Em que circunstâncias é que a Srª D. Isabel aludiu ao nome do Sr. Carlos Cruz?

Fernanda Flora - Ela teve acesso, portanto, isto não foi logo nesse dia, foi no dia seguinte ou no outro, ela teve acesso ao relatório que a directora fez. Eu, na altura, não tive. Acho que terá ficado chocada com o que leu e veio comentar no lar que achava muito mal que, sem provas, a arquitecta Maria Jorge mencionasse o nome do Sr. Carlos Cruz, porque era uma pessoa conhecida e por os rapazes teriam falado nele. Só isso.

 

Perante a insistência do Ministério Público, reafirmou que não tinha qualquer recordação de alguma vez ter relacionado as fotografias com Carlos Cruz:

 

Fernanda Flora - Eu deduzi que fossem fotografias com algum teor, não sei se isso se chamará pornográfico, mas... por aí.

Procurador - E a Srª D. Isabel fez alusão a que nessas fotografias estivessem crianças?

Fernanda Flora - Não.

Procurador - Por alguma razão... por alguma razão, algum facto que ainda não tenha referido, ainda que como mera hipótese, a senhora algum dia associou ou admitiu como possível relacionar as fotografias com o Sr. Carlos Cruz?

Fernanda Flora - Não.

 

Os educadores revisitados: vi) a directora

 

            A directora do colégio, já falecida, prestara declarações no inquérito, logo a 27 de Novembro de 2002 e, depois, a 28 de Fevereiro de 2003, as quais foram lidas em audiência de julgamento.

Na primeira inquirição, logo após a eclosão do escândalo e da revelação das fotografias, feita por Teresa Costa Macedo, a antiga directora recordou que o resgate dos menores fora feito pela colega Maria Isabel Evangelista, mas não deixou de referir que lhe fora dito que, na casa, havia muitas fotografias, de pessoas importantes, e que, numa delas, estaria Carlos Cruz "fazendo parte de um grupo" (!). Não foi capaz de dizer quem concretamente lho disse, sendo certo que ela não as viu. Porém, a verdade é que, no relatório de 1982, a directora refere que os jovens identificaram vários retratados nas fotografias (dizendo os seus nomes ou alcunhas), mas não menciona Carlos Cruz, pelo que é legítima a dúvida sobre a acção do efeito de sugestão por tudo o que estava a ser divulgado na comunicação social.

Contudo, foi peremptória no sentido de que não tinham sido trazidas fotografias, até porque, se assim fosse, isso não deixaria de ser referido no relatório, alegando ainda que "quanto recorda, a Isabel, não queria ser acusada de furto, já lhe bastava a violação de propriedade privada".

Na segunda inquirição, já não fez qualquer referência Carlos Cruz, limitando-se a dizer que lhe foi contado que existiam fotografias numa caixa guardada na casa do diplomata:

 

Foi contado à depoente que existiam fotografias numa caixa guardada no quarto do Jorge Rito, onde apareciam os frequentadores da mesma casa. Os educadores da altura não viram nem trouxeram as fotografias, tal como não trouxeram as tiradas pelo Jaime e pela Fernanda um ao outro enquanto estiveram na casa. Estas últimas fotos foram tiradas por uma máquina Polaroid que se encontrava na casa do embaixador.

  

  

Os educadores revisitados: vii) síntese

  

            O que é que se retira desta revisitação à memória dos funcionários da Casa Pia que contactaram com os acontecimentos de 1982?

            Primeiro, que não foram trazidas fotografias de casa do diplomata.

            Segundo, que ninguém relata ter visto qualquer fotografia em que fosse visto Carlos Cruz, nem ninguém identifica alguém que tivesse visto fotografias onde Carlos Cruz fosse retratado.

Subsiste uma divergência. Maria Evangelista Mendes afirma não ter visto as fotografias, apesar da insistência dos menores. Fernanda Flora Gomes acha que a colega as viu, as achou indecentes e não identificou ninguém.

Pode acontecer que Maria Evangelista Mendes tivesse apagado da sua memória as fotografias "indecentes" que terá visto. Pode acontecer que Fernanda Flora Gomes tenha presumido, de forma errónea, que a colega as viu, quando confrontada com as insinuações dos jovens de que a colega, se as tivesse visto, poderia "desmaiar", o que traz implícito que as fotografias tinham um cariz sexual.

Parece-nos que a versão da Maria Evangelista Mendes é mais consistente com o seu perfil e com o próprio texto do relatório, até porque era a principal responsável da operação e a única que foi ao interior do apartamento onde as fotografias estariam. De qualquer forma, esse aspecto é irrelevante. Tenha ou não visto as fotografias, o certo é que não as trouxe e, mesmo que as tivesse visto, nelas não reconheceu ninguém.

 

As autoridades em 1982: i) a inspectora Leontina Fernandes

  

Em 1982, a inspectora Leontina Fernandes - uma das mais prestigiadas polícias portuguesas e, salvo erro, a primeira a ascender a um lugar de direcção na Polícia Judiciária - tinha a seu cargo a 4ª Secção, à qual cabia, entre vários outros crimes, a investigação dos crimes sexuais. Dada a multiplicidade das suas atribuições, chamavam à 4ª Secção "o caldeirão".

Foi à 4ª Secção que foi inicialmente distribuído o processo que resultou da participação de Teresa Costa Macedo, relativamente aos factos que envolveram Fernanda Correia e Jaime Pimenta.

Ao tempo, já a 4ª Secção investigava queixas de natureza criminal contra Carlos Silvino, com base em participações do mestre Américo Henriques, as quais, já nos juízos correccionais, vieram a morrer à sombra de um qualquer regime prescricional.

A Polícia Judiciária interrogou alguns dos jovens envolvidos, mas não localizou nem Jaime Pimenta nem Orlando Pereira. De resto, os autos revelam mais do que uma nova fuga de Jaime Pimenta da Casa Pia, após o episódio de Março de 1982. Foi também ouvida Maria Isabel Evangelista, que confirmou o que constava no relatório dos educadores.

Inquirida na audiência de julgamento, em 24 de Novembro de 2006, a inspectora Leontina Fernandes, que tinha refrescado a sua memória com a consulta dos elementos disponíveis em 2002, na Polícia Judiciária, foi clara no sentido de que, tanto quanto era possível reconstituir, o processo não incluía fotografias de quem quer que fosse, pelo que, quando enviado à comarca competente que era Cascais, não remeteu material dessa natureza. De resto, o relatório final da Polícia Judiciária não menciona essa documentação.

 

As autoridades em 1982: ii) a procuradora Maria do Carmo Peralta

  

            Em Cascais, o processo esteve na responsabilidade da procuradora Maria do Carmo Peralta (na altura, delegada do procurador da República, hoje, procuradora-geral adjunta).

            Trata-se igualmente de uma magistrada de grande rigor e, no que isso tem de meritório, muito combativa, como o meio judicial sabe.

            A procuradora Maria do Carmo Peralta foi ouvida na audiência de julgamento de 8 de Fevereiro de 2007. Recordava-se do processo. Assegurou que não viu fotografias, que nele não constavam fotografias, nem qualquer cota que mencionasse a existência de fotografias. Afiançou ainda que não falou com ninguém que tivesse visto as fotografias ou que soubesse que as fotografias tinham sido incorporadas no processo ou para ele remetidas.

            Julgamos, pois, que acerca das fotografias não pode subsistir dúvida para ninguém. Elas não saíram da caixa de sapatos amarela que o Dr. Jorge Ritto guardava em sua casa.

 

As autoridades em 1982: iii) os agentes provocadores

  

            A história das fotografias da caixa de sapatos amarela foi um maná. De repente, multiplicaram-se as fontes que garantiam que tinham visto o que não podiam ter visto.

            O "Correio da Manhã", na sua edição de 29 de Novembro de 2002, ouviu os agentes da 4ª Secção da Polícia Judiciária, em 1982: Saturnino Ramos (sub-inspector), Viriato Gomes e António Caetano (agentes). Saturnino Ramos e Viriato Gomes não se recordam de fotografias ou de outro material dessa natureza. Mas já António Caetano assegurava que tinha apreendido "fotos, cassetes e revistas pornográficas".

            Mais tarde, na edição de 6 de Janeiro de 2003, o "Correio da Manhã" fazia manchete com declarações do agente Caetano: "Eu conto tudo - ele viu as fotos de pedofilia da Casa Pia". O agente afirmava-se disponível para colaborar com a Assembleia da República e com o DIAP e afiançava que tinha apreendido fotografias na casa do embaixador Jorge Ritto, para além daquelas que Teresa Costa Macedo também teria entregado na Polícia Judiciária. Mais dizia que as fotografias tinham seguido para o tribunal de Cascais. O "Correio da Manhã" recordava o bom currículo do agente Caetano na área dos crimes sexuais, muito embora também lembrasse que o agente Caetano "foi afastado da PJ, acusado de nove crimes de falsificação de mandatos de captura, 16 de abuso de poder e 13 de burla; apanhou 12 anos de cadeia; cumpriu sete, tendo sido libertado em 2001".

O agente Caetano chegou a ser arrolado, por uma das acusações, para depor em audiência de julgamento, que, depois, disso se desinteressou, pelo que o agente acabou por não ser ouvido. Em compensação, foi ouvida em julgamento a jornalista da TVI Alexandra Borges, que, a 27 de Novembro de 2006, declarou que o agente Caetano lhe tinha dito que, no âmbito daquele processo, tinha feito buscas a casa do embaixador (diz mesmo que as buscas "estão assinadas por ele"), apreendendo fotografias, as quais teriam sido divididas em dois molhos, umas apensas ao processo, outras entregues ao Dr. Marques Vidal (que foi director da Polícia Judiciária).

Teria bastado um mínimo de diligência à jornalista para captar o absurdo da situação. É que o Dr. Marques Vidal só foi director da Polícia Judiciária a partir de 1985. Ademais, o Dr. José Alberto de Almeida Marques Vidal (hoje, juiz conselheiro jubilado) não é uma pessoa qualquer. Bem sabemos que todos somos iguais em direitos, que os mais virtuosos também mentem e os maiores criminosos também falam verdade. Porém, entendamo-nos. A credibilidade das pessoas não é igual e mal iremos no dia em que se faça tábua rasa do passado de cada um.

Acresce o mais espantoso: é que o relatório final da Polícia Judiciária, que descreve as diligências efectuadas, não menciona quaisquer fotografias, nem buscas, nem nada de parecido. E quem o subscreveu, foi precisamente o tal agente Caetano, a quem o processo foi distribuído, após doença do agente Viriato Gomes.

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Não ficou por aqui a tentativa de dar corpo à estapafúrdia tese de que a Polícia Judiciária apreendera fotografias, que retratariam Carlos Cruz em actos de cariz sexual.

Em Fevereiro de 2005, quando Carlos Cruz iniciava o seu depoimento na audiência de julgamento, a TVI divulgou uma tonitruante entrevista com o agente Jorge Cleto, que assegurava que lhe tinham sido entregues fotografias de Carlos Cruz "a tocar no sexo de um miúdo". Diz mesmo que até as mostrou ao ex-colega Moita Flores, que, no jornal "24 Horas", prontamente respondeu: "Ele sabe que é mentira. Esta a forjar isto em nome das suas vinganças pessoais pelo facto de ter sido condenado. Não tenho culpa dele ter sido condenado (...). Não tive nada a ver com isso. Isto é mentira pura e simplesmente. É uma coisa tão patética".

De facto, Jorge Cleto foi condenado, por sentença de 7 de Novembro de 1995, pelo 2º Juízo do Círculo Judicial de Setúbal, pela prática de um crime de corrupção passiva e de um outro de auxílio de material a criminoso, o que foi confirmado, mas apenas quanto a este último crime, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Novembro de 1997, transitado em julgado. Na Polícia Judiciária, foi demitido, tendo requerido que a pena fosse substituída pela aposentação compulsiva, o que foi deferido.

Não é tanto o currículo que impressiona, mas, sobretudo, o extremo topete das declarações prestadas na audiência de julgamento, a 8 de Março e a 20 de Abril de 2007, onde contou a sua mirabolante história.

Começou por se apresentar como inspector aposentado da Polícia Judiciária, que teria sido condenado criminalmente, mas sem que, porém, tivesse transitado em julgado a respectiva condenação. O que era falso.

Depois, contou que, em 1984, um jovem, por si interrogado uns anos antes no âmbito de um furto, mas com quem mantinha contacto, lhe teria entregado uma cassete, com a gravação de uma conversa com o embaixador Jorge Ritto, e 12 fotografias, parte das quais retratando Carlos Cruz em actos de natureza sexual. Teria guardado esse material no seu cacifo, uns dias antes de ter sido preso. Depois de libertado, em Julho de 1986, foi à Polícia Judiciária e verificou que o cacifo fora arrombado e a cassete e as fotografias haviam desaparecido. Contou a ocorrência apenas a um colega da sua secção, José Manuel Lopes Parreira, já falecido. Participara o furto ao director adjunto da directoria de Lisboa, mas nada soubera da sequência desse acto. Mais se prontificou a apresentar cópia da queixa que dizia ter apresentado, o que lhe foi deferido, mas só muito tardiamente cumprido.

A 20 de Abril, tornou a depor, já com o "papel" que seria a cópia da queixa que formulada. Tornou a mentir quanto ao seu passado em matéria de condenação criminal e voltou a relatar os mesmos factos. Todavia, agora, nem hesitou a dizer que não tinha qualquer ideia acerca do conteúdo da cassete, precisamente a mesma sobre a qual, em Março, afirmara conter uma gravação de Jorge Ritto. Por outro lado, insistiu que as fotografias retratariam Carlos Cruz.

Acontece que o processo individual de Jorge Cleto, na Polícia Judiciária, está nos autos, sendo extremamente minucioso sobre todas as ocorrências da vida policial do agente Cleto. Só que aí nada consta quanto ao furto ou extravio das ditas fotografias e demais objectos. Mais: em 1986, já depois da data em que diz ter participado o furto de que teria sido vítima, Jorge Cleto foi ouvido, na Polícia Judiciária, acerca do extravio de outros objectos que - esses sim - lhe estavam confiados e haviam desaparecido. Pois bem, nem mesmo nessa altura o agente Cleto aludiu sequer ao furto das fotografias de Carlos Cruz.

De resto, a tal cópia da queixa que diz ter apresentado é, afinal, um papel sem carimbo de entrada, nem de recepção, de que não há notícia na Polícia Judiciária e de que ninguém ouviu falar, a não ser, imagina-se, o colega Parreira, entretanto falecido, que já não está cá para o confirmar.

Contudo, houve uma última diligência para atestar da fiabilidade do depoimento. Como Jorge Cleto tinha dito que guardara a cópia (a cópia original, naturalmente) da queixa, foi o mesmo convidado a exibir essa cópia, de forma a permitir fazer uma perícia à idade do papel. Claro que não a apresentou. Mais tarde, informou o tribunal que provavelmente estaria numa pasta que ele teria deixado ao falecido Parreira.

Jorge Cleto é um "artista português". Palavras para quê?

 

Os protagonistas de 2002: i) Teresa Costa Macedo

  

No dia 23 de Novembro de 2002, o jornal "Expresso" anunciava, sob a manchete "Pesadelo na Casa Pia", que um funcionário, durante 30 anos, violara impunemente crianças institucionalizadas do sexo masculino. O caso só vinha agora à luz devido a uma queixa apresentada, algum tempo antes, por uma das suas vítimas.

O crime fora revelado, há cerca de um mês, por Pedro Namora, antigo casapiano, à jornalista Felícia Cabrita. A jornalista descobriu que a situação do dito funcionário - Carlos Silvino da Silva - era recorrente, apesar de denunciada, desde os anos 70, pelo mestre Américo Henriques, professor na Casa Pia. A jornalista quis saber como teria sido possível que um manto de silêncio cobrisse tudo isso.

Ao nível das autoridades que tinham tutelado a Casa Pia, houve logo um nome "negro" apontado: Teresa Costa Macedo, que, nos anos 80, sendo Secretária de Estado da Família, punira Américo Henriques, porque, no percurso das denúncias efectuadas, "exorbitou as suas funções" (sic), uma vez que desrespeitara a hierarquia.

O violador seria um "monstro", mas era "arraia miúda". A história já tinha "um herói", Américo Henriques, e uma "bruxa má", Teresa Costa Macedo. Aquele fora, de facto, um herói solitário na defesa da dignidade das crianças da Casa Pia, mas Teresa Costa Macedo - apesar do absurdo da punição a Américo Henriques - estava a ser algo injustiçada, porque a verdade é que ela fizera seguir para a Polícia Judiciária as suspeitas que haviam chegado até si.

Ao final do dia de sexta-feira, dia 22 de Novembro de 2002, confrontada com as acusações que Felícia Cabrita lhe colocava sobre a sua participação no silenciamento dos abusos, Teresa Costa Macedo percebeu que o caso "estava a sobrar para si". De resto, era facto público e notório que, ao tempo, a antiga governante andava às voltas com um conturbado, nunca bem esclarecido, processo na Universidade Lusófona, o que certamente também a incomodaria.

Num instinto de defesa, Teresa Costa Macedo reagiu com violência e passou ao ataque. Como era possível estar a ser posta em causa, quando fora ela que participara à Polícia Judiciária uma situação passada em casa de um embaixador, frequentada por gente conhecida, como Carlos Cruz?

Teresa Costa Macedo tinha guardado os relatórios dos educadores de 1982, já referidos, e sabia que neles, pelo menos, estavam mencionados os nomes de Jorge Ritto e Carlos Cruz. Logo informou disso a jornalista, mas acrescentou que ainda tinha um terceiro relatório, com os nomes de muitos outros envolvidos: políticos, diplomatas e gente da comunicação social. E apimentou ainda mais a revelação, quando falou que tinham sido apreendidas fotografias em casa do embaixador, que ela própria teria visto e onde estariam retratadas pessoas famosas. Como Carlos Cruz.

Esta conversa mudou o rumo da história.

A jornalista percebeu que estaria perante um novo "ballet rose". Desta vez melhorado. Não eram só menores. Era um caso de pedofilia homossexual, que envolveria a nata do regime democrático.

Nos dias seguintes, Teresa Costa Macedo esteve por três vezes na "SIC".

Da primeira vez, Teresa Costa Macedo revelava que Carlos Silvino, o "Bibi", não seria só o violador, mas o angariador para personalidades da política, da sociedade, da diplomacia e da comunicação social. E a fuga de Jaime Pimenta e Teresa Correia, que efectivamente não passara da noite do dia da fuga, passou a ter a duração de 15 dias:

Teresa Costa Macedo- Não é só o Bibi, dito Bibi, Sr. Funcionário da Casa Pia, que é o violador, ele é um angariador também, ficou provado isso, estavam as provas na Polícia Judiciária que ele angariava os meninos da Casa Pia para determinadas personalidades do mundo da politica, do mundo da sociedade, do mundo até da comunicação social.

Jornalista (Clara de Sousa)- Diplomatas, também?

Teresa Costa Macedo- Diplomatas eram, foi na casa de um diplomata que foram encontrados os meninos que em 82 desapareceram durante 15 dias.

 

Da segunda vez, Teresa Costa Macedo deu ainda mais cor à história. De resto, trajava de vermelho, quando na véspera estava de negro. Desta vez, Teresa Costa Macedo assumia ter visto fotografias, que tinham sido recolhidas na casa do embaixador, de cariz sexual, onde até reconhecera uma pessoa. Avançava ainda que, além dos dois relatórios que já entregara à jornalista Felícia Cabrita, haveria outros e mais graves. Afiançava que o seu chefe de gabinete seria sua testemunha, da existência das fotografias e da sua entrega na Polícia Judiciária:

 

Jornalista (Rodrigo Guedes de Carvalho)- Figura central tem sido a minha convidada, Teresa Costa Macedo, na altura era Secretária do Estado da Família, estamos a falar acerca de vinte anos, Dr.ª Costa Macedo boa noite, mais uma vez, a senhora tem sido, está aqui numa espécie de um fogo cruzado, por um lado, diz que foi das primeiras a denunciar este caso, com veemência a levá-lo às últimas instâncias e temos antigos alunos da Casa Pia a dizer que a senhora não fez nada.

Teresa Costa Macedo- Em primeiro lugar, gostaria de dizer que nem os antigos alunos, nem os próprios professores, 1.300 ou 1.200 na altura, não tinham conhecimento do que se passava ao nível das decisões do Governo, havia conflitos quando eu entrei em 80 entre, laborais, entre o Provedor e os vários professores. Portanto as decisões que foram tomadas imediatamente a seguir aos relatórios chegados ao meu gabinete, e que foram enviados para as entidades competentes, com certeza que alunos, como o que esteve aqui agora, tinha dez anos na altura com certeza, como o próprio Mestre Américo Henriques que foi sempre um professor muito querido, na Casa Pia, também não sabiam porque também não lhes era comunicado (...)

Jornalista- Sr.ª Doutora, nós vamos ouvir daqui a pouco, o actual Ministro Bagão Félix, na altura Secretário de Estado também do seu ministério, dizer que também não teve conhecimento de nenhuma alegada rede de pedofilia. A PJ diz que não consta nenhuma queixa, não consta nenhuma queixa sua.

Teresa Costa Macedo- Eu tenho que dizer que ... tenho o meu chefe de gabinete que é a minha testemunha e outros que no momento em que nós entregámos todo o material recolhido na casa de que falei ontem, na casa do Estoril, todas as fotografias, tudo aquilo que nós entregámos, que foi assinado uma declaração do Inspector que foi enviado pelo então director da Polícia Judiciária, isso ficou tudo no Ministério. Os meus sucessores com certeza que tiveram conhecimento (...).

Jornalista- Muito bem, feita a defesa veemente dos passos que tomou na altura tendo em conta que ficou absolutamente indignada com o que ouviu ...

 Teresa Costa Macedo- Claro. Com certeza.

Jornalista- O que é que a escandalizou, o que é que a escandalizou mais no que viu, nessas provas?

Teresa Costa Macedo- Eu nessas provas foi, tinha 37 anos, e foi ver fotografias de abuso sexual, hoje nós já a vimos nas televisões, até já se pode falar de uma maneira diferente da própria pedofilia, não é tabu, mas eu fiquei profundamente chocada, tinha filhos pequeninos, de ter visto aquilo que vi, tenho que dizer que só vi duas fotografias porque o resto das fotografias ficaram, foi o meu chefe de gabinete que ficou com elas, e que depois as entregou todas elas à própria Polícia.

Jornalista- E nessas, nessas duas fotografias que viu reconheceu de imediato, pessoas?

Teresa Costa Macedo- Só uma pessoa, mas isso não interessa, porque ...

Jornalista- Eu penso que interessa.

Teresa Costa Macedo- Não, não interessa porque havia muito mais, há todo o depoimento das crianças que estavam nessa casa.

 Jornalista- Estamos a falar para pessoas que possam não ter ouvido, estamos a falar de uma casa no Estoril que pertencia a um diplomata.

Teresa Costa Macedo- No Estoril, exactamente, que acolheu durante uns dias jovens que tinham desaparecido da Casa Pia, cujo Provedor não fez diligências, não os conseguiu encontrar, que reportou à tutela que era eu e que eu imediatamente através do meu gabinete desenvolvi todas as (...)

Jornalista- Doutora, e com toda a delicadeza, lamento também ter que voltar às suas palavras, porque as suas palavras ficaram a pairar, a pairar ...

Teresa Costa Macedo- Ai com certeza.

Jornalista- ... sobre as pessoas, a senhora falou especificamente de ...

Teresa Costa Macedo- Pois, mas eu não vou dizer nem, não vou dizer nomes ...

Jornalista- ... de políticos, de diplomatas, de jornalistas.

Teresa Costa Macedo- Não me cabe a mim, não me cabe a mim dizer nomes.

Jornalista- Mas repare, logo aqui estão três classes em causa.

Teresa Costa Macedo- É, sabe, é a Polícia Judiciária que tinha todas as provas, onde é que estão as fotografias, onde é que está todo o material, onde estão os depoimentos, eu por acaso tenho dois relatórios, que até já entreguei à jornalista de que eu muito admiro, que teve imensa coragem, a Felícia Cabrita, que pelo menos tem essas indicações e dou-as com certeza, o que tenho

Jornalista- E a senhora tem esses relatórios ainda em seu poder?

Teresa Costa Macedo- Mas tenho dois, mas há muito mais e os principais e os mais graves, não fiquei (...).

 

Da terceira vez, no decurso do programa "Hora Extra", exibido pela "SIC", a 26 de Novembro de 2002, a antiga Secretária de Estado tomou uma posição mais cautelosa. Já não repetiu - em público - que tinha reconhecido quem quer que fosse em fotografias, mas reafirmou a sua existência e a forma como, por sua iniciativa, os relatórios e as fotografias tinham sido remetidos para a Polícia Judiciária. Insistia que havia um terceiro relatório, de que ela não tinha cópia, o qual referia "todos os homens que tinham passado por aquela casa", que teria por si pedido às educadoras:

 

Jornalista (Conceição Lino)- Boa noite, Teresa Costa Macedo, hoje esteve na Judiciária, o que é que disse hoje

Teresa Costa Macedo- Somente aquilo que é o mais importante, que são os relatórios que de 82, eu própria avoquei como responsável e governante, os relatórios que reportavam a uma situação dramática que foi o desaparecimento dos meninos da Casa Pia, encontrados numa casa em Cascais, depois por minha iniciativa, esses, foi o relato, e foi a apresentação desses relatórios que na Polícia Judiciária em Lisboa, não estavam, portanto e ao mesmo tempo ajudei ...

Jornalista- Não estavam e deveriam estar?

Teresa Costa Macedo- Não, explicaram-me que dado que os factos tinham acontecido na Comarca de Cascais, ao tempo, o procedimento era enviar tudo o que respeitava, inclusive o material que são as fotografias, que deveriam ...

Jornalista- Para a Comarca?

Teresa Costa Macedo- Para a Comarca ...

Jornalista- ... correspondente ...

Teresa Costa Macedo- Exactamente.

Jornalista- ... que é Cascais e donde tivemos a confirmação há bem pouco tempo, esta tarde, ao fim da tarde, que não há nada, tudo o que dizia respeito a este processo foi destruído no Tribunal de Cascais segundo as informações que nos chegaram, de qualquer modo ... porque é que guardou esses relatórios consigo?

Teresa Costa Macedo- Eu, guardei os relatórios porque achei que ...

Jornalista- Achava que um dia ia precisar deles?

Teresa Costa Macedo: Não, não, não, porque, podia ter guardado aqui o auto de entrega do material que eu achava mais complicado, mais difícil e mais delicado que eram as fotografias das crianças abusadas nessa casa, e esse auto eu deixei no Ministério ... estes dois relatórios foram feitos por minha iniciativa, não foi o Provedor, fui eu que pedi às educadoras e ao polícia que as acompanhou que fizessem para mim um relatório sobre a situação geral que é um deles, e o depoimento, queria saber exactamente os jovens, o que é que os jovens tinham dito, havia um outro relatório em que os jovens, mais completa, apontavam todos os nomes de todos as pessoas, de todos os homens que tinham passado por aquela casa, e eu esse relatório não tenho. Portanto eu apresentei aqueles dois que eu achei mais importantes na altura.

 

Entretanto, no intervalo do programa, Teresa Costa Macedo lançava o nome de Carlos Cruz, como, em audiência de julgamento, recordaram Felícia Cabrita e Pedro Namora. Este até terá estranhado a particular insistência da referência a Carlos Cruz. Por outro lado, Teresa Costa Macedo entregava um papel manuscrito à jornalista, onde constava o nome de outros envolvidos na suposta rede. De resto, parte desses nomes já antes teriam sido revelados verbalmente (juntamente com outros), por Teresa Costa Macedo à jornalista Felícia Cabrita. A rede abrangeria assim, pelo menos, mais dois ex-ministros e três embaixadores.

Ouvida em audiência de julgamento, a 11 de Janeiro de 2007, Teresa Costa Macedo repetiu que existiriam fotografias, as que lhe tinham sido trazidas pelas educadoras numa caixa amarela, que ela também teria visto. Conta que viu uma ou duas fotografias de crianças, em posições sexuais com adultos, o que a impressionara muito, e não viu as restantes. Declarou não ter reconhecido nenhuma das pessoas que figurava nas fotografias. E que remeteu tudo para a Polícia Judiciária. Negou que tivesse manuscrito o papel que Felícia Cabrita trouxera aos autos, com o nome de outros supostos abusadores.

Nessa mesma noite, de novo na "SIC" e confrontada com o facto de ter dito, em Novembro de 2002, que identificara uma das pessoas retratadas, veio agora apresentar uma nova tese. Quem teria feito a identificação, teria sido uma das alunas.

Enfim, a confusão e a contradança de recordações não podiam ser maiores.

As testemunhas que poderiam corroborar a versão de Teresa Costa Macedo, incluindo o seu chefe de gabinete, não confirmaram a sua versão e até a desmentiram. O manuscrito exibido por Felícia Cabrita é praticamente certo que é da autoria da antiga Secretária de Estado, como uma perícia forense atestou, na sequência de queixa crime que a jornalista lhe moveu.

Tudo o mais - relatórios de 1982 da Casa Pia, relatório da Polícia Judiciária, despacho de arquivamento, depoimentos das educadoras e dos jovens envolvidos, bem como da inspectora e da magistrada do Ministério Público a quem os processos foram confiados - a desmente.

Teresa Costa Macedo não viu quaisquer fotografias, nem a caixa de sapatos amarela, nem coisa nenhuma retirada da casa do diplomata Jorge Ritto. Não houve terceiro relatório com uma lista de abusadores. Pura e simplesmente porque isso não aconteceu.

Como é que se explica que uma pessoa experiente, madura e com inegável nível intelectual tenha caído nesta espiral de fantasia e contradição?

São mistérios da natureza humana, mas a defesa de Carlos Cruz acredita que a senhora não foi movida por um propósito malévolo. Era apenas uma mulher acossada, quiçá injustamente, que se lembrava de algumas coisas, acrescentou outras e fantasiou ainda outras. E pura e simplesmente perdeu o controlo da sua memória e de si própria.

 

Os protagonistas de 2002: ii) António Monteiro Garcia

  

            António Monteiro Garcia estava preso quando o processo Casa Pia eclodiu. Ele não fazia parte do grupo dos jovens envolvidos na história de 1982, mas conhecia-os e ouvira falar da fuga de Teresa Correia e Jaime Pimenta. Era chegado o seu momento. Falou, logo, a Pedro Namora, que falou a Felícia Cabrita. Depois, os casapianos Pedro Namora e Adelino Granja visitaram-no no estabelecimento prisional. Pedro Namora transmitiu-lhe as perguntas que Felícia Cabrita lhe queria fazer.

As suas revelações eram surpreendentes e encaixavam-se na tese da rede pedófila, dando continuidade às declarações de Teresa Costa Macedo. Confirmou que Carlos Cruz frequentava a Casa de Jorge Ritto, onde o tinha visto assistir a "bacanais". E de uma assentada envolve na "rede" um ex-presidente da República, Ramalho Eanes, o então Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, dois jogadores de futebol, Carlos Manuel e Chalana, e outro nome da comunicação social, Fernando Pessa.

Porém, tal "peça" inventava descaradamente. Referia Jorge Ritto e Carlos Cruz, porque era o que dava jeito à época. Atirou os outros nomes como podia ter atirado outros quaisquer. O que estava a dar era apontar os pedófilos poderosos da rede, que toda a gente já assentara que existia, mas que ainda não se sabia quem eram.

Quando António Garcia depôs em audiência de julgamento, a 4 de Maio de 2006, a expectativa era imensa.

Todavia, António Garcia já não estava preso. Não precisava de continuar a mentir e teve, enfim, a lucidez de perceber que não tinha o direito de contribuir, com puras falsidades, para a condenação dos homens que se sentavam atrás de si.

Desmentindo o que dissera durante o inquérito, negou que conhecesse os arguidos, a não ser da comunicação social:

 

Procurador - Na altura em que esteve na Casa Pia não conheceu nenhum destes Senhores?

António Monteiro Garcia - Não.

Procurador - Não? O Senhor disse, no entanto, que conhecia todos os Arguidos.

António Monteiro Garcia - Conheço.

Procurador - Em que circunstâncias é que os conheceu e quando?

António Monteiro Garcia - Pessoalmente não.

Procurador - Então, conhece-os como?

António Monteiro Garcia - Comunicação social.

 

Referiu-se a Fernanda Correia e Jaime Pimenta, mas afiançou que nunca tinha ido com eles a casa do embaixador Jorge Ritto e que não sabia do que lá se passava:

 

Procurador - Se o Senhor depois do Tó Jaime e da Fernanda Teresa terem voltado se falou com eles?

António Monteiro Garcia - É assim, sobre o que aconteceu não. Não havia nada para conversar.

Procurador - Não é sobre o que aconteceu. Sobre que ... a Fernanda Teresa e o Tó Jaime contaram-lhe porque é que tinham ido para aquela casa, como é que tinham entrado?

António Monteiro Garcia - Não.

Procurador - Porquê aquela casa? Não?

António Monteiro Garcia - Quem contou foi o meu irmão. Diz que chegavam cá em baixo, falavam com o porteiro e o porteiro deixava-os entrar. A partir daí não sei mais nada.

Procurador - E o que é que se passava dentro dessa casa? E o Senhor nunca perguntou ao seu irmão?

António Monteiro Garcia - Não, ele disse-me que não era da minha conta.

 

Perante a surpresa, o procurador da República quis apurar se teria havido contactos entre a testemunha e os arguidos, até porque, num determinado período de tempo, tinham estado detidos no mesmo local. Mas a resposta foi clara:

Procurador - Mas esteve ao mesmo tempo com alguma das pessoas que aqui está? Algumas das pessoas que aqui estão estiveram detidas, como creio que sabe.

António Monteiro Garcia - Estive com eles sim.

Procurador - No mesmo estabelecimento prisional?

António Monteiro Garcia - No mesmo estabelecimento. Isso pode-se ver nas fichas.

Procurador - Falou com algum desses ...

António Monteiro Garcia - Não, nunca falei com nenhum deles.

Procurador - Não?

António Monteiro Garcia - Não.

Procurador - Nunca contactaram por qualquer meio? Pode-se falar, pode-se escrever, pode-se mandar bilhetes, pode-se escrever cartas, ao telefone, pode-se comunicar de muita maneira, por gestos, etc.? Nunca houve qualquer tipo de comunicação?

António Monteiro Garcia - Não, nunca houve qualquer tipo de comunicação.

 

A testemunha explicou ainda o que ganhara com a notoriedade alcançada, quando, na prisão, "serviu" a acusação:

 António Monteiro Garcia - Por acaso eu nem fiz a chamada... a primeira chamada nem foi no destinatário. Porque é assim, eu era faxina da Sr.ª Directora e foi-me facultado uma chamada no gabinete da Sr.ª Directora.

Procurador - Portanto, foi feito do telefone fixo do estabelecimento prisional ...

António Monteiro Garcia - Exactamente.

Procurador - ... de Setúbal?

António Monteiro Garcia - Exactamente.

Procurador -  Do gabinete da Sr.ª Directora?

António Monteiro Garcia - Foi, sim senhor.

Procurador - Pronto. Para esse número ...

António Monteiro Garcia - A Dr.º Maria do Céu, exactamente. Porque é assim, eu, desde que isto começou, eu depois passei a ser o menino protegido dentro do estabelecimento. É verdade. Tem que se dizer.

Procurador - Pronto. Espero bem, Sr. Garcia. Desejo.

António Monteiro Garcia - Foi verdade.

Procurador - Sim senhor.

António Monteiro Garcia - Passei a ser o menino protegido. Aliás ... pronto ... eu já era um bocadinho por causa da subdirectora ser minha vizinha, mas depois passei a ser mais um bocadinho. E, então, tinha outras regalias que certas pessoas não tinham. 

 

Em face do exposto, o Ministério Público requereu a leitura das declarações de António Garcia prestadas no inquérito. Com base no regime legal que o tribunal aplicou, as defesas podiam-se ter oposto a tal leitura, mas não o fizeram. A verdade deveria prevalecer.

Mas António Garcia confessou que mentira no inquérito:

 Juíza Presidente - Sr. António Monteiro da Silva lembra-se de ter prestado estas declarações?

António Monteiro Garcia - Lembro.

Juíza Presidente - Quer fazer alguma alteração em relação ao que declarou hoje em audiência de julgamento?

António Monteiro Garcia - Não.

Juíza Presidente - O Senhor declarou contudo ao Tribunal, que o que na altura falou anteriormente no âmbito deste processo, as declarações que prestou eram verdade, pelo menos em alguma medida são diferentes das que hoje prestou em alguns aspectos, quer introduzir alguma alteração, quer fazer, acrescentar alguma coisa.

António Monteiro Garcia - Não, não quero.

Juíza Presidente - Sr. Doutor algum esclarecimento? Nada, Sr. Procurador, Srs. Doutores algum esclarecimento?

 Advogado - Eu tenho, Sr.ª Doutora.

Juíza Presidente - Qual é o esclarecimento Sr. Doutor?

Advogado - Aquilo que o Senhor disse aqui em Tribunal é a verdade?

António Monteiro Garcia - É.

Advogado - O que significa que aquilo que...

Voz Não Identificada - (... imperceptível ...)

Juíza Presidente - Não, deixe-o terminar, pode prosseguir Sr. Doutor.

Advogado - O que significa que aquilo que disse no inquérito, na parte que não coincide com o que está aqui em Tribunal não corresponde à verdade?

António Monteiro Garcia - Relatei factos.

Advogado - Hum.

António Monteiro Garcia - Relatei factos.

Advogado - Ó Sr. António Garcia, o Senhor disse aqui em Tribunal, eu já disse que tinha acreditado em si, o Senhor não conhecia o Sr. Carlos Cruz...

António Monteiro Garcia - Vamos fazer assim, o que eu disse em Tribunal, é o que eu disse em Tribunal, é o que eu mantenho em Tribunal, está certo, então o que eu disse antes em mentira, está esclarecido?

Advogado - Está.

António Monteiro Garcia - Percebeu?

Advogado - Percebi.

António Monteiro Garcia - Está bem?

Advogado - Está bem.

António Monteiro Garcia - Está esclarecido?

Advogado - Estou esclarecido.

António Monteiro Garcia - Pronto.

 

O procurador da República ainda procurou encontrar uma explicação para o que acontecera e teve a resposta:

Procurador - Sim, Sr.ª Doutora. O que o Senhor disse em Tribunal é verdade, tudo verdade?

António Monteiro Garcia - Tudo o que eu disse em Tribunal, é verdade.

Procurador - Então o Senhor também disse em Tribunal que o que tinha dito ali era verdade.

António Monteiro Garcia - É o que eu disse ali.

Procurador - Então, está a mentir aqui também.

António Monteiro Garcia - Não, não estou.

Procurador - Então o que está ali escrito é verdade?

António Monteiro Garcia - É assim o que eu disse hoje é verdade.

Procurador - E o que disse ali, e quando disse que o que disse no inquérito e que acabou de lhe ser lido ...

António Monteiro Garcia - Fui forçado a dizer.

Procurador - Por quem?

António Monteiro Garcia - Pelas pessoas que me visitaram, Adelino Granja e pelo Pedro Namora.

  

            Como é evidente, nem Pedro Namora nem Adelino Granja impuseram ou sugeriram a António Garcia a mentira. Mas ele percebeu que o interesse da conversa só subsistiria, se ele revelasse aquilo que os seus interlocutores estavam à espera e gostariam de ouvir. A fraqueza humana é assim.

 

Concluindo

              Depois desta longa incursão, qualquer um - despido de preconceito - reconhecerá que nada sobra de relevante do episódio de 1982.

             De resto, também a sentença do processo Casa Pia nada deu como provado relativamente a toda essa matéria, a qual estava abrangida pela acusação para traçar um perfil de comportamento.

            Tudo se resume a uma menção - anónima, porque não se sabe a quem deve ser atribuída -, que consta de um dos relatórios de 1982, onde se refere que Carlos Cruz frequentava a casa de Jorge Ritto.

Tal referência - a ter uma base concreta - só pode ter tido origem na "boca" de Jaime Pimenta num grupo de amigos, de que faziam parte Fernanda Correia (namorada) e José Carlos Santos, gabando-se de uma "banhada" que dera à pessoa, que, nesse momento, via no ecrã da televisão: Carlos Cruz. Está esclarecido pelo próprio que se tratava de uma "treta". Mas pode também ter nascido da convicção, genuína mas errónea, de uma adolescente, quando julgou ter reconhecido - numa fracção de segundos e numa fotografia "Polaroid" - uma pessoa que acreditou ser Carlos Cruz. Está esclarecido que a própria admite que se possa ter enganado.

Tudo o mais é fantasia, invenção e pura maldade.

Estes dados têm ainda de ser conjugados com a circunstância de não existir - ao longo de sete anos de processo, com mais de 900 pessoas inquiridas em julgamento, com milhares e milhares de documentos juntos, com milhões de registos telefónicos cruzados, com a vida de Carlos Cruz escalpelizada até à ínfima minúcia - qualquer prova de que Carlos Cruz conhecesse Jorge Ritto, visitasse a sua casa ou mantivesse com ele qualquer tipo de relação, por mais fugaz que fosse. E não existe essa prova porque Carlos Cruz não conhecia Jorge Ritto. Em bom rigor, nem sabia quem era Jorge Ritto.

Muita gente se pergunta: porque é que Carlos Cruz, se está inocente, está envolvido neste processo? Alguém que lhe queria mal? Quem? Porquê? Porque raio de razão haviam de lhe atribuir este crime tão repulsivo?

A resposta está neste terrível boato que, na circunstância fatídica do desvendar de um lado negro da vida da Casa Pia, apareceu com a peça certa para um puzzle que todos queriam completar: a rede de pedófilos famosos que o país acreditava que existia.

Quando Carlos Cruz foi confrontado com a mentira que lhe podia destruir a carreira, como destruiu, reagiu. Fê-lo num território onde reinava há 40 anos: a televisão. Solicitado pelos três canais, apareceu à mesma hora a dizer o mesmo. Para ele, que vivia da sua imagem - na apresentação de programas, mas também na publicidade -, era fundamental matar o boato, logo à nascença. Terrível engano. Acicatou-o. Nas suas alegações, o procurador da República admitiu mesmo que Carlos Cruz, nesse momento, cometera um suicídio.

Augusto Cid - num cartoon de Fevereiro de 2003 - teve a arte de, num rasgo, explicar o que aconteceu. No desenho, está um miúdo amedrontado, sentado diante de um polícia façanhudo, que lhe pergunta: quem é que abusou de ti? Por detrás do polícia e diante do miúdo, a toda a largura e altura da parede, está um retrato: o de Carlos Cruz.

 


A prova documental relevante consta do apenso T. 

Cfr. fls. 37.528 e ss. do processo.

Cfr. fls. 37.247 e ss. do processo.

Cfr. fls.43.374 e ss. do processo.

Cfr. DR. II série, 21/11/2005 e requerimento da defesa de Carlos Cruz, na audiência de julgamento de 7 de Agosto de 2008.

Os elementos documentais, ora citados, sobre o agente Jorge Cleto foram juntos pela defesa de Carlos Cruz na audiência de julgamento de 7 de Agosto de 2008.

Cfr. fls. 3 a 6 do processo.

Relativamente às presenças ma "SIC" a 24 e 25 de Novembro de 2002, cfr. DVD de fls. 42.372 do processo; relativamente ao programa "Hora Extra", de 26 de Novembro de 2002, cfr. cassete do apenso Z9.

Cfr. as declarações de Pedro Namora e de Felícia Cabrita prestadas, respectivamente, nas audiências de julgamento de 22 e 23 de Junho de 2005 e 10 e 13 de Julho de 2006.