Processual > Carta da Direcção da Policia Judiciaria opondo-se à minha detenção

A minha prisão a 1 de Fevereiro de 2003 desencadeou uma "guerra" entre Ministério Publico e Policia Judiciária.

A investigação deste processo foi avocada pelo Ministério Publico a 7 de Fevereiro do mesmo ano.

Avocar (do latim avocare) significa arrogar-se ou atribuir-se e neste caso significa que o Minitério Publico chamou a si a inteira responsabilidade sobre o processo, não só no que toca a decisões de carácter jurídico mas também aquelas de carácter operacional.

A decisão de avocar este processo residiu na defesa que a Direcção da Policia Judiciária fez, de uma investigação competente e sem erros.

Até 7 de Fevereiro a realização de diligências por parte da Policia Judiciária era levada a cabo por elementos da segunda Secção de Investigação Criminal de Lisboa sob as directivas directas de Rosa Mota e Dias André que estavam sob a hierarquia funcional da Direcção da Policia Judiciária de Lisboa - a quem estavam obrigados a comunicar todas as diligências efectuadas durante a investigação.

O Dr. Adelino Salvado, então Director Nacional da Policia Judiciária informou, baseado numa carta do seu Sub-Director Nacional, o Dr. Artur Pereira, o Dr. Souto Moura, então Procurador Geral da Republica, de vários erros, lacunas e perigos da investigação deste processo.

Como é público, na sequência desse episódio, o Dr. Souto Moura reuniu com Adelino Salvado e este, já tarde durante a noite, saiu dizendo que estava tudo esclarecido e que havia concordância entre a PJ e o MP. Ficámos sem saber o que se terá passado nessa reunião mas a partir dessa data o processo seria avocado pelo Ministério Publico.

Rosa Mota e Dias André viriam posteriormente a acusar Artur Pereira de os pressionar. Vejamos o que diz Rosa Mota sobre Artur Pereira e a sua actuação:

Rosa Maria Mota Teixeira Mendes - Sim senhor. O Dr. Artur Pereira na altura em que o Ministério Público com ... a legitimidade que lhe é dada por lei, resolveu em termos de investigação estar na hora de se, na altura de se proceder à detenção do, do arguido Sr. Carlos Cruz, manifestou-se veementemente contra e tentou que eu tivesse alguma actuação que de qualquer forma demovesse, o Ministério Público da sua decisão.

Juiz Presidente - E porquê? Se foi directamente consigo.

Rosa Maria Mota Teixeira Mendes - Foi directamente comigo.

Juiz Presidente - Foi ...

Rosa Maria Mota Teixeira Mendes - Todas estas conversas para ... aconteceram dentro dos respectivos gabinetes e em privado, comigo como é óbvio.

Juiz Presidente - Foi-lhe dada alguma explicação?

Rosa Maria Mota Teixeira Mendes - No entender deles, nesta 2ª situação, foi-me dito que achavam que não estavam reunidos ... os indícios suficientes para se proceder a uma detenção.

E porquê estranhou?

Rosa Maria Mota Teixeira Mendes - Sr. Doutor, nunca nos 20 e poucos anos de polícia que tenho, nenhum director meu ... teve a veleidade de dizer que eu ia deter bem ou mal, uma pessoa porque isso é um acto pessoal, de responsabilidade exclusiva da autoridade de, de polícia criminal que o executa. Ponto 1, Sr.ª Doutor ainda não acabei, se me permite.

Advogado - Certo, certo.

Rosa Maria Mota Teixeira Mendes - Ponto 2, sempre admiti que me dessem as opiniões que achassem por, por bem dar. Esta não foi o caso, 1º porque a decisão sobre a detenção ou não, não era da polícia judiciária, em absoluto, a situação tinha sido levantada numa reunião em que esteve presente o Ministério Público, a decisão cabia em exclusivo às autoridades judiciais, não o cabe a um órgão de polícia criminal levantar esse tipo de questões. A opinião que eu tinha, foi relatada ao Ministério Público na reunião, portanto, entendo que o deveria ter sido também pela direcção.

Resumindo, no primeiro ponto exposto pela Dra Rosa Mota a responsabilidade de uma detenção é exclusivamente dela mas no segundo ponto da sua exposição a responsabilidade de uma detenção é em exclusivo do Ministério Publico. Esclarecidos?

Rosa Mota não se fica por aqui e explica o porquê de estranhar a atitude de Artur Pereira:

Rosa Maria Mota Teixeira Mendes - Curiosamente, o Dr. Artur Pereira sempre gostou e como todos os ... directores desta casa, que ... somar presos na carteira, perdoem-me a expressão, e isto era exactamente o contrario da, do comportamento normal em termos de direcção. Porque eu, os meus problemas em termos de detenções, têm sido exactamente o contrário, é algumas vezes terem dito "se calhar era bom pensarmos em deter este indivíduo." E sempre me foram colocadas assim.

Assim, por mostrar discordância quanto à minha prisão por achar não estarem reunidos indícios suficientes, Artur Pereira, que a própria Rosa Mota diz gostar de "somar presos na carteira", é acusado de pressionar a investigação.

Acerca desse dia, o Inspector Chefe Dias André refere que foi um dia memorável porque foi "o dia em que os elementos da Polícia Judiciária começaram a depender funcionalmente do Ministério Público e deixaram de estar a funcionar directamente sob a alçada do director da Polícia Judiciária."

O Inspector Dias André não mais voltou à Policia Judiciária. Reformou-se antecipadamente.

Desde cedo que este padrão comportamental se revela no seio da investigação: quem de alguma forma se opusesse a esta equipa de investigação ou interrogasse os seus métodos arriscava-se a ser acusado de pressionar ou estar a defender a violência e os pedófilos.

O mesmo aconteceu mais tarde, por exemplo, com o jornalista de investigação Jorge Van Krieken, que cedo questionou os métodos e conclusões desta investigação através do site ReporterX.com, entretanto extinto. Como resultado viu a sua foto ser colocada no Álbum de suspeitos da Policia Judiciária.

Quanto a Artur Pereira, não o conheço de parte nenhuma. Vi-o uma única vez, no Tribunal. Mas não posso deixar de admirar o seu profissionalismo ao pôr em duvida tudo o que se estava a passar.

Aqui fica o Memorando  de Adelino Salvado para o PGR que viria a determinar a avocação da investigação deste processo por parte do Ministério Publico:

Para aceder directamente ao "fac-simile" do Documento de Adelino Salvado para Souto Moura, que se encontra no Processo, clique aqui.  Obs: pode ter alguns segundos de ecrã negro antes de abrir o documento.

MEMORANDO  DO DR ADELINO SALVADO PARA O PGR DR. SOUTO MOURA

(incluído no Processo nas fls 52.467 a 52.475)

Porque a evolução da investigação em curso no denominado ''processo da Casa Pia" vem assumindo contornos que de todo nos escapam urge fazer o ponto da situação contextualizando devidamente a exposição que ora se remete ao superior conhecimento de V.Exª.

Diga-se que qualquer análise e avaliação da situação processual do inquérito em apreço sobre os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual enferma, necessariamente, do desconhecimento pormenorizado das incidências e das diligências

concretas realizadas nos autos pelo grupo de investigação, constituído pelos Magistrados do MP e funcionários da PJ. Esta ausência de informação e consequente desconhecimento advém de uma série de factores que concorreram para que a produção dessas diligências fosse decidida e executada numa lógica de funcionamento directo entre os referidos magistrados e as autoridades de polícia criminal (Coordenadora e Inspector-Chefe) que integram a equipa de investigação.

Assim, e elencando:

Desde o início do inquérito em cujo âmbito a PJ se disponibilizou com total abertura mental e afectação de meios, foi visível - e objectivamente feito notar pelo Sr. Procurador - que esta investigação se deveria, apenas, reportar aos elementos do grupo, excluindo os superiores hierárquicos - tanto do MP, como da PJ - de tomarem conhecimento da mesma, vincando ser plenipotenciário sobre todos os contornos que a investigação revestisse;

De imediato se verificou uma completa identidade de procedimentos e perspectivas entre o Sr. Procurador e as chefias de investigação (Director Nacional Adjunto da Directoria de Lisboa e respectivo Subdirector),tendo ficado acertado que qualquer diligência efectuada pelo M.P. ou pela P.J seria comunicada à outra parte e qualquer decisão mais melindrosa seria tomada pelo M.P.;

Foi acertada a ocorrência de reuniões semanais entre as duas partes envolvidas, a fim de se efectuar o ponto de situação e combinar as acções futuras, sem embargo de, quotidianamente, e na medida das necessidades processuais, a PJ - por via da Coordenadora [Rosa Mota] ou do Inspector-Chefe [Dias André] - contactar o M.P. para a resolução de qualquer problema que transcendesse a polícia; Tal facto  levou a que se viessem a multiplicar os contactos entre, sobretudo, o Inspector-Chefe e o Sr. Procurador, numa lógica que se tomou de exclusão em relação ao conhecimento hierárquico da polícia. Aliás, acabou por se notar que com alguma estranheza, a Coordenadora se relaciona, essencialmente, com as Sras. Procuradoras-Adjuntas e o Inspector-Chefe com o Sr Procurador;

Quer isto dizer que nas reuniões semanais aprazadas - nas quais começou a participar uma Coordenadora Superiora, por indicação da hierarquia policial - as questões eram discutidas superficialmente e as verdadeiras decisões tomadas paralelamente através daqueles contactos e com a preocupação desta chefia não ser informada, ao que legitimamente supomos porque a mesma era vista como um "corpo estranho", quase um "espião" da Direcção do departamento;

O entorse do circuito de contactos normais levou à ocorrência de incidentes desagradáveis, a saber (e apenas como exemplos):

A possibilidade de afectação de uma outra funcionária da Polícia à investigação (questão discutida, particularmente, e à revelia da hierarquia entre Inspector-Chefe e Sr. Procurador[João Guerra]);

A produção de um documento para impedir uma reportagem televisiva censurando um determinado depoimento (problema que, por se pretender envolver exclusivamente a P.J., foi afastada pela Coordenadora Superiora e, mesmo assim, foi concretizada - à sua revelia - pela Coordenadora em concatenação como Sr. Procurador);

As repetidas e supostas ''fugas de informação" (atribuídas sistematicamente à hierarquia do departamento, quando é certo que o próprio Sr. Procurador Geral da República emitiu comunicado sobre a desnecessidade de instauração de processo...crime por violação de segredo de justiça - uma vez que tal violação não existia.

Face à repetição de situações que configuravam, objectivamente, completa falta de confiança na hierarquia da polícia por parte do MP, foi, por várias vezes, a Coordenadora chamada à atenção para o facto de que o respeito pela cadeia de comando e a necessidade de corrigir eventuais lapsos no decorrer de uma investigação tão delicada, implicar, inexoravelmente, o conhecimento da mesma pela Direcção, havendo da sua parte, nas diversas reuniões efectuadas, um suposto acatamento das orientações, mas, na prática, uma ausência de vontade de informar ou de disponibilizar os termos mais detalhados da investigação, sempre em consonância com o Sr.Procurador [João Guerra]

De tal forma que, embora questionada a Coordenadora sobre o plano estratégico da investigação com vista quer à afectação dos meios necessários em cada momento quer à competente avaliação da correcção das técnicas policiais usadas nunca tal planeamento foi disponibilizado por razões que em absoluto se ignoram.

O certo é que subvertendo-se a intenção da hierarquia quanto à avaliação de algo de básico na investigação criminal, como a existência de uma estratégia planificada, vemos ser-lhe atribuída a subterrânea motivação de que a colocação sobre a mesa de plano de acção mais não escondia do que a ideia de colher informação para, não se sabe com que intenção, vir a ser divulgada .

Contudo, do que foi possível apurar fragmentariamente, notou-se que a recolha de elementos de natureza probatória assentava, quase exclusivamente, em depoimentos de menores que terão sido abusados sexualmente por adultos;

Pese embora o facto de, antes das detenções, terem sido interceptadas linhas telefónicas respeitantes a pelo menos dois dos arguidos (Carlos Cruz e João Dinis), não foi colhido -tanto quanto nos fui informado pela Coordenadora qualquer elemento de relevo;

Por outro lado, e segundo a mesma fonte, eram desconhecidos alguns elementos essenciais e básicos em qualquer investigação e, nomeadamente, nos autos em causa, como sejam as localizações das residências onde os abusos terão sido cometidos, as identificações dos seus proprietários ou locatários, a existência de relações interpessoais comprovadas entre os arguidos. A falta de realização (mormente aquando das detenções) de buscas domiciliárias e em escritórios dos visados, a recolha e tratamento da facturação dos seus telemóveis e análise dos próprios telemóveis:

Aliás, a própria motivação e decisão do momento e da forma das detenções, foi completamente subtraída ao conhecimento da hierarquia (incluindo a própria Coordenadora Superiora), uma vez que na reunião efectuada no dia anterior às mesmas foi, apenas, aventada a possibilidade de emissão de mandados, desconhecendo-se qual a razão fundamental que permitiu que no dia seguinte - pressurosamente - os mesmos fossem emitidos e tivessem que ser cumpridos em conjunto.

A propósito, haverá que referir que a decisão de emissão e cumprimento de mandados foi de tal arte que se desconhecia, com certeza, v.g. qual a residência efectiva do visado Carlos Cruz e essa precipitação mais se acentuou quando o mesmo, ao sair dessa residência, não pôde ser interceptado porque os mandados ainda não se encontravam disponíveis, sinal de uma de duas realidades: ou completo erro na avaliação da realidade ou, então, a existência de algum elemento concreto - que desconhecemos em absoluto - e que apontasse para a sua fuga; o ínvio circuito de comunicação e o desejo de afastamento total das hierarquias levou a que o Sr. Procurador [João Guerra]  referisse (ou ordenasse!) à Coordenadora [Rosa Mota]que as mesmas hierarquias não poderiam tomar conhecimento da emissão dos mandados;

Do mesmo modo, não se verificou a preocupação de acompanhar as detenções com diligências tão óbvias como as já mencionadas buscas ou apreensão de telemóveis, bem como a inequívoca certeza quanto à existência e localização dos lugares onde os abusos terão sido efectuados;

Não se compreende, também, qual a impreterível razão da ocorrência das detenções em simultâneo, uma vez que ao que sabemos - e pelo menos naquele momento - não estavam processualmente estabelecidas - a não ser pelos depoimentos -ligações entre os três detidos;

Correlacionados e concatenados estes factos, foi intenção da Direcção apurar quais as fragilidades e dificuldades da investigação, com o fito de suprir as suas lacunas, apoiar os investigadores e ajudar à formulação das estratégias correctas das acções futuras, das quais, a nosso ver, eram essenciais a colaboração do indivíduo conhecido por ''Bibi'' e a repescagem e análise crítica de todos os elementos informativos e indiciários surgidos, ao longo dos anos, em processos-crime (ou fora deles), respeitantes aos suspeitos e a outros eventuais implicados;

Esta aproximação - de auxílio e orientação, aliás, um verdadeiro dever legal - levou a uma forte reacção do Sr. Procurador [João Guerra] acolitado pelo referido Inspector-Chefe [Dias André]  , e contando com a ausência de atitude da Coordenadora [Rosa Mota]   , reacção essa fundada na suspeição e desconfiança constantes, reveladoras, nos limites, de falta de respeito pela probidade e seriedade da Direcção do departamento.

Ao longo deste relacionamento de mais de dois meses, o Sr. Procurador [João Guerra]  fez questão de - conforme já se referiu - reafirmar que as chefias, tanto as da Policia como as da Procuradoria-Geral, não tinham que ser informadas do que se passava, reagindo, aliás, a mais uma das imensas ''notícias'' - obviamente falsas  surgidas (que davam conta que o Director de Lisboa passaria a chefiar directamente as investigações) com desagrado e estupefacção;

Tudo visto, e em resumo, afigura-se-nos legítimo enformar as seguintes conclusões:

Desde o início , sempre foi intenção do Sr. Procurador afastar qualquer intervenção hierárquica da PJ (e, aparentemente, também do MP) na investigação a decorrer;

Ao longo do tempo de investigação, foi criada uma forte relação de confiança entre o Sr. Procurador, [João Guerra]   a Coordenadora  [Rosa Mota] e o Inspector-Chefe [Dias André]  que seria de enaltecer, caso não fosse construída como contraponto da exclusão de conhecimento e intervenção da hierarquia, supostamente suspeita de querer ou poder vir a boicotar o trabalho a realizar;

Estes funcionários da Policia - apesar de repetidamente alertados - não configuraram, devidamente, que continuam vinculados aos deveres hierárquicos, criando a convicção no Sr. Procurador de que esta Direcção seria apenas um estorvo e não um acompanhamento e apoio na realização da investigação;

Saliente-se que a Direcção só não interveio no sentido de afastar da investigação tais funcionários - face ao seu comportamento absolutamente reprovável - porque seria criada a convicção de que tal afastamento radicaria numa postura de dificultar, boicotar ou fazer, mesmo  gorar esta investigação, vindo, assim, a reforçar a errónea perspectiva do Sr. Procurador em relação aos "insondáveis" desígnios da hierarquia policial;

A preocupação da Direcção funda-se na insuficiência - a nosso ver - dos elementos de natureza probatória encaminhados para os autos, o que poderá, nesta fase em que existem já arguidos detidos, comprometer decisivamente a descoberta da verdade material, tanto mais que foi notável, ao longo destes dois meses. uma completa ausência de planificação e controlo da investigação, traduzida na falta de qualidade de várias das diligências efectuadas (v. g. recolha de depoimentos importantes), no retardamento de outras diligências fulcrais (v.g. reconhecimentos de locais) e na falta de execução de destoutras absolutamente de "catálogo"(v.g. buscas, apreensões);

Assim, reafirmando o desconhecimento sobre os termos em que evoluiu a investigação, será de manifestar a máxima inquietação pela forma como a mesma se encontra a ser conduzida, nomeadamente em sede de fundamentação probatória, tanto em relação aos arguidos detidos, como a outros indivíduos já mencionados nos autos.