Confissões de uma mulher, vítima de pedofilia:

«Abusavam de nós e filmavam-nos»

 

 Lila foi iniciada aos 11 anos numa rede de pedofilia. Em entrevista ao EXPRESSO/SIC, lembra-se de dois políticos que frequentavam uma casa onde eram molestadas crianças, algumas delas da Casa Pia. Foi mais uma das vítimas da rede pedófila que já nos anos 80 actuava às escâncaras e que envolvia políticos, entre outros. Lila era levada pelo próprio pai para participar em sessões com outras crianças, incluindo miúdos, alguns deles da Casa Pia. Às vezes, Lila parece uma criança.

É quando assoma o medo arrastado pelo passado. Conta que, aos 11 anos, para fugir de uma sessão pornográfica em que participava, teve de matar uma criança da sua idade. Pode não ter sido assim, mas foi o que lhe relataram. É agora uma mulher de 35 anos, mas mantém a pele lisa de uma menina, sempre molhada pelas lágrimas, como se vivesse em permanente castigo.

Quando o escândalo de pedofilia da Casa Pia rebentou, voltou a tomar medicamentos, como aos 14 anos, quando já não suportava o peso das recordações. Foi o presente que a libertou. O relato de outras vítimas fez com que já não se sentisse única e culpada. Mas precisava de provas e reuniu o que pôde: o seu passado clínico. E, com a ajuda de outra testemunha, conseguiu localizar a casa da linha do Estoril onde tiveram lugar alguns episódios, que pertencia na altura a um comandante da Marinha e da qual se lembrava ter uma âncora no jardim. Agora o suicídio já não lhe ocorre. Mas em tempos tentou, e os sulcos ainda lhe marcam os braços. Hoje, o sorriso borda-lhe o rosto bonito, como se estivesse finalmente salva.

Como se viu envolvida nesta rede?

Lila, de 35 anos, na Estufa Fria: em criança, o pai iniciou-a numa rede de pedofilia, de rapazes e raparigas, que actuava em Lisboa e no Estoril. Era aqui que a vinham buscar

-Foi através do meu pai, que era homossexual. Quando fiz 11 anos, levou-me num fim-de-semana à Estufa Fria. Eu pensava que estava ali para brincar. Até que apareceu um carro grande com um homem que me levou para uma casa em Lisboa.

-Foi nesse dia que tudo começou?

-Não. Nesse dia apenas brinquei com outros meninos que lá estavam. Passámos a tarde a brincar ao jogo «sobe e desce». Foi um dia normal, estavam rapazes e raparigas, mas as meninas não eram portuguesas. Havia vários adultos que circulavam pela casa, e desse dia apenas recordo um senhor que tinha uma câmara e dizia estar a fazer um filme com a gente a brincar.

-Que aconteceu da segunda vez que voltou a essa casa?

-Não consigo definir o que se passou propriamente ou como é que as coisas foram, mas sei que algumas crianças já estavam despidas, que filmavam, pediam para a gente mexer uns nos outros, e havia outras crianças que estavam noutras divisões.

-Que faziam nas outras divisões?

-Estavam com os homens bons, como nós lhes chamávamos. Havia os homens bons e os homens maus.

-Quais eram as diferenças?

-Os bons eram aqueles que não nos magoavam nem insultavam. Eram carinhosos. Chegavam, escolhiam os meninos, retiravam-se para os quartos. Os maus eram os que abusavam de nós, nos maltratavam e ameaçavam durante as filmagens.

-Lembra-se de algum homem bom?

-Sim, um era um político conhecido e o outro um futuro ministro. Mas tinham comportamentos diferentes. Um chegava a essa casa de Lisboa, escolhia um menino e retirava-se para um dos quartos. O outro assistia às filmagens, enquanto nós e os adultos tínhamos sexo uns com os outros. Só depois escolhia a criança que lhe agradava e retirava-se para o quarto.

-O seu pai recebia dinheiro ou outras contrapartidas desses homens?

-Não sei, nunca percebi. Lembro-me que íamos de autocarro até ao Parque Eduardo VII e descíamos até à Estufa Fria. Às vezes já estava lá um carro à nossa espera, outras vezes não e eu ficava no jardim a brincar e depois ele vinha-me buscar. Quando o carro já lá estava, ele ia-me pôr ao jardim e voltava não sei para onde, e dizia que me vinha buscar. Realmente ia buscar-me, por vezes muito tarde, mas vinha sempre. Na altura tinha medo, mas ele trazia-me sempre um mimo, abraçava-me e dizia que gostava de mim, que eu era uma linda menina.

-Pedia-lhe para não contar nada?

Dizia que, se me portasse bem, ele ia dar-me muitos beijinhos, muitos mimos e muitos abraços, que nada se ia passar comigo. Pedia-me incessantemente para não contar nada a ninguém porque era um segredo só nosso.

-O que acontecia nessa casa?

-Comigo eram feitos filmes. Havia homens que abusavam de nós, mas comigo foi só uma vez. Um homem utilizou-me como os homossexuais usam os rapazes, e isso doeu-me.

-Na altura estava a ser filmada?

-Estava. Praticamente nunca éramos filmados individualmente, recordo-me de haver sempre pelo menos mais quatro ou cinco crianças.

-Isso foi na casa de Lisboa?

-Não, foi numa casa do Estoril.

-Estavam presentes esses políticos de quem falou?

-Só um deles, que gostava de assistir às filmagens mas depois, como já disse, retirava-se com um menino.

-Como era o homem que filmava?

-De estatura mediana, com 40 e tal anos. Tinha uma característica: uma perna de pau. Às vezes, para fazer rir os meninos, até batia na perna, que era para nós olharmos para a câmara.

-O seu pai também a levava para a casa de Cascais?

-Sim, mas o ponto de encontro era onde actualmente é a Docapesca. Ia com o meu pai até lá, onde a maior parte das vezes estava um senhor com uns meninos à espera.

-Quando o carro não estava, que fazia enquanto esperava?

-O meu pai partia e ficava sozinha. Como havia ali umas obras, com um bocado de tijolo eu desenhava na estrada a «macaca» e jogava até que o carro chegasse.

-Tinha 11 anos. Como é que encarava estas coisas na altura?

-Era tudo um jogo, para nós era um filme. Havia o lado da dor, que para mim sempre foi mais difícil de controlar. Mesmo assim, fui muito poupada, mas ver os outros meninos a serem violentados era doloroso, claro. Mas eles sabiam levar-nos: pela violência ou de uma forma mais bondosa.

-Fala de bondade...

-Diziam palavras de carinho, que nós éramos muito bons naquilo, que íamos ser uns heróis, que as pessoas iam gostar muito. No meio de alguma violência, às vezes havia afecto de algumas pessoas.

-Isso durou quanto tempo?

-Um ano, mais ou menos. Mas houve um dia em que não suportei.

-Porquê?

-Há uma rapariga que no meio de uma filmagem me... tem que fazer determinado tipo de cenas comigo, e eu não suportei e saí.

-Que é que não suportou?

-Tinha que me ser introduzido um objecto, eu não suportei isso e fugi da sala onde estava. Atrás de mim vem uma das raparigas que estava comigo, e, quando me toca, não sei explicar como é que as coisas se passaram, só sei que agarrei num atiçador de ferro da lareira e joguei-lhe com ele em cima. Só me lembro depois do sangue, muito sangue, de uma confusão enorme, de ralharem comigo e de dizerem que eu a tinha matado.

-Ainda acredita que a matou?

-É um pesadelo que acho que me vai perseguir até ao fim.

-Depois desse acontecimento lembra-se do que se passou?

-Não me recordo de mais nada, até porque me retiraram da rede.

-Nunca mais lhe deram qualquer informação sobre a rapariga?

-Não. O meu pai referia uma ou outra vez que eu era uma assassina, mas nunca referenciou mais nada.

-Começou muito cedo a receber tratamento psicológico e chegou a ser internada. Com que idade?

-A primeira vez foi aos 19 anos. Há muitas coisas, que, segundo dizem os médicos, esqueci por necessidade de sobrevivência. Quis apagar da memória. Mas, de vez em quando, as coisas saltavam. Uma vez, em 1996, vi num jornal a foto de um homem que reconheci como uma das pessoas que frequentavam a casa de Lisboa. Isso levou-me a lembrar a morada exacta. Fui lá ter e disseram-me que tinha vivido lá um estrangeiro mas que já se tinha mudado.

-O facto de ter reconhecido esse homem fê-la voltar ao passado?

-Sim, nos meses seguintes senti-me perdida. Em 1997, depois de uma tentativa de suicídio, fui de novo internada no Júlio de Matos.

-Sempre atribuiu essa responsabilidade ao seu pai. Quando voltou para casa, como reagiu ao voltar a vê-lo?

-Perdi o controlo sobre mim em relação a ele e voltei a ser internada. Ele saiu de casa.

-Contou estes acontecimentos à sua mãe. Como é que ela reagiu?

-Sentiu revolta e acreditou momentaneamente, mas depois, e até hoje, acha que é uma invenção.

-E o seu pai, como é o vosso relacionamento agora?

-Não existe, nem quero. Mudei de cidade, a minha família não tem o meu contacto. Tenho medo deles. O meu psiquiatra diz-me também que a forma de cortar com o passado passa pelo corte com eles.

-E como reagiam os médicos à sua história e aos nomes que refere?

-Uma vez, tenho ideia de ter nomeado um deles e de me terem perguntado se eu tinha a noção de que estava a fazer graves acusações.

-Hoje, com todos estes casos de pedofilia, que tipo de sensações vive?

-Voltou tudo para trás. O que considerava passado passou a ser um presente muito real. Estou a viver tudo de novo, com medo de ser reconhecida, de chegarem a mim. Mas sinto também alívio por saber que há outras pessoas que sentem a mesma vergonha e o mesmo medo.

-Nunca quis revelar a sua história sem ter as provas que achava mais importantes. Isso passou pela busca da sua história clínica...

-Depois de ter assistido a muitas tentativas de denegrirem os depoimentos das vítimas, quis soldar as pontas do meu passado, e isso só era possível pela minha história clínica. Foi duro, mas ao mesmo tempo fiquei feliz por confirmar que tudo acabava por estar ali referenciado.

-Acredita que se vai fazer justiça?

Tudo tem as duas faces. A descrição do que pode ter sido um pesadelo, e continua a sê-lo, ajudou a libertar-me de algumas coisas, mas também tenho a consciência de que não existe justiça que possa ser feita em relação a tudo o que se passou, que compense o silêncio da vergonha, do medo, do sofrimento. Apenas poderá servir para que outras pessoas no futuro, outras crianças, passem menos. Nem que seja só uma, terá valido a pena o meu depoimento.

-Está disposta a revelar à justiça todos os nomes, nomeadamente os desses dois políticos?

-Sim. Finalmente, ganhei coragem para me dirigir ao DIAP e contar a minha história. Faço tudo desde que mantenham o meu anonimato.